sábado, 11 de julho de 2015

A Grande Obra de José

As ciências herméticas tem como patrono a figura mitológica de Hermes, o mensageiro dos deuses, conhecido entre os romanos como Mercúrio. Representado com asas nos pés, símbolo de sua agilidade e flexibilidade, Hermes é aquele que faz a ligação entre os vários planos da realidade, manifestando para os homens as verdades transcendentes.



Por isso, Hermes é associado também aos oniromantes, aos videntes e a todos aqueles que são os intérpretes da vontade divina, como José, um dos doze filhos do patriarca Jacó. Porém, os paralelos entre José e Hermes não param por aí. Por isso, nesse post, pretendo analisar a narrativa da vida de José a partir do simbolismo astrológico e alquímico. 

Invejado por ser o filho predileto de Jacó, José foi vendido pelos próprios irmãos como escravo. Temos aqui a fase do nigredo, representado simbolicamente por Saturno, o deus que foi deposto de seu domínio e aprisionado no Tártaro. Da mesma forma, antes de ser vendido, José foi lançado numa cisterna e perdeu a túnica multicolorida que tinha ganhado de seu pai, o que remete ao símbolo bíblico do arco-íris como aliança entre o Céu e a Terra. 


Como o acordo entre Céu e Terra foi perdido, é necessário reconquistá-lo mediante a realização da Obra hermética. Entretanto, ela deve começar em Saturno, o chumbo que é o ponto de partida para a produção do ouro. Assim como o chumbo representa o estado caótico da alma humana e as limitações decorrentes disso, como escravo, José tinha suas possibilidades restritas, mas é nessa condição que ele começará sua ascensão, ao ser vendido para Potifar.

Na casa desse oficial do faraó, José acaba se tornando um servo de destaque, responsável por administrar todas as posses de seu senhor. Segundo a Bíblia (Gn 39:5), Deus abençoou a casa de Potifar durante todo esse período, o que mostra o aparecimento de uma outra etapa da Obra, representada por Júpiter, o senhor dos deuses, que manifesta sua benevolência trazendo a prosperidade e a fecundidade após a putrefação saturnina.

Entretanto, com todo o sucesso que conquistou na casa de Potifar, José acaba sendo alvo das investidas da mulher de seu senhor, que tenta seduzi-lo. É o aparecimento de Vênus, a sedução oferecida pelas bênçãos divinas da fase anterior. Como os valores são ambíguos, eles podem também ser um grande obstáculo para o desenvolvimento espiritual, como comprova o episódio do Jovem Rico, narrado no Evangelho. 

José poderia ter cedido aos encantos da esposa de Potifar e traído a confiança de seu senhor, mas resiste até o ponto de ter de fugir (literalmente) das investidas da sedutora. Nesse caso, Vênus é contrabalançada por Marte, a virilidade espiritual do homem que luta contra si mesmo, para destruir nele o apego venusino às dádivas espirituais. 

Essa atitude marcial tem como resultado a criação de uma espécie de indiferença em relação às coisas, já que elas deixam de ser desejadas em si mesmas. Nesse caso, o homem se torna receptivo à vontade divina, e pode aceitar com tranquilidade mesmo as situações mais desagradáveis. É a manifestação da Lua, a receptividade pura à luz solar, simbolizada pela ida de José à prisão. De fato, é nessa situação aparentemente ruim que se manifesta nele, pela primeira vez, o dom da interpretação dos sonhos. 

Tendo se mostrado dócil à vontade divina, José ganha não só a capacidade de interpretar sonhos, mas também o cargo de governador do Egito, que simboliza o ponto culminante da Obra hermética: a produção do ouro. Nesse estágio, passado todo o processo, o alquimista ressuscita, regressando na plena consciência de seu corpo e portando em seu interior a essência da Grande Obra. De forma análoga, José não só sai da prisão para ser exaltado como governador, mas também recebe o nome simbólico de Zafenate Paneia, que significa "Deus disse: ele está vivo".

Assim, completa-se o processo de balanceamento das forças: da mesma maneira que Júpiter equilibra Saturno e Marte balanceia Vênus, a ação conjunta da receptividade lunar e da realeza solar geram juntas o elixir da longa vida, o manancial interior capaz de alimentar não só o adepto, mas também aqueles que estão ao seu redor: "E de todas as terras vinham ao Egito, para comprar de José; porquanto a fome prevaleceu em todas as terras." (Gn 41:57). Mais uma vez se confirma a analogia entre José e Hermes, pois a síntese entre Sol e Lua só é possível através do Mercúrio, que porta em si a resolução das forças planetárias e, por isso, serve de meio para a condução da Obra.




sexta-feira, 3 de julho de 2015

A Óctupla Morte



Número ambíguo e de reverberações sinistras, o oito há muito atrai minha imaginação aos seus fundos simbólicos.

Trata-se fundamentalmente do símbolo numérico dos saltos qualitativo-formais, das mudanças de plano ou escala. Daí sua relação tradicional com as imagens mortuárias. Nas catacumbas romanas, por exemplo, é comum a presença dos lábaros, formas óctuplas que deixam entrever um sentido de obra finalizada e transcendida, e portanto, de repouso eterno. 

Uma breve observação da escala musical não deixa dúvida quanto ao sentido universal dessa passagem. Após uma sequência natural de sete sons que vai do “dó” ao “si”, segue-se novamente o dó, mas não o mesmo dó, um “dó oitavado”, transmutado qualitativamente.     
    
Outras aplicações tradicionais do oito como imagem de passagem podem ser observadas na regra judaica de circuncisão ao oitavo dia do recém-nascido, bem como no formato octogonal das pias batismais antigas ou na ressurreição de Cristo ao oitavo dia da sua paixão. Ademais, as estruturas octogonais são tradicionalmente utilizadas nas construções de domos em templos de todas as tradições. Sendo a transição geométrica entre o quadrado e o círculo, a forma óctupla serve como ligação estrutural entre a parte inferior da construção, geralmente quadrada ou retangular e a cúpula redonda na parte superior. Não é gratuito lembrar que a tradição chinesa considera que a terra é quadrada e o céu, redondo, funcionando o octógono como a transição perfeita entre esses dois planos.       


Perceba que a obra completa e perfeita sempre foi simbolizada pelo número sete em todos os povos. A obviedade disso não escapa a praticamente ninguém criado em países de cultura cristã. Como se sabe, Deus criou o mundo, completou a sua obra escalar, em seis dias e no sétimo descansou.  À perfeição dessa obra criativa, segue-se um estágio bem mais escuro, relacionado ao fim ou destruição desse mesmo “cosmos” septenário. Não por acaso, oito é o número típico de Dionísio ou de Shiva. A ideia aqui é a morte renovadora, a dissolução intoxicante de todas as formas cristalizadas, a dança terrível de Shiva Nataraja.    



É curioso como geralmente as uvas usadas na formação da bebida dionisíaca, o vinho, são pisadas e reduzidas ao seu sumo durante o período anual do signo de Escorpião, o oitavo signo zodiacal, arquétipo astrológico da devastação estática.     

Esta época do ano, regida pelo signo de Escorpião, é marcada pela de morte da vegetação, pelo despojamento de todos os seus adornos, flores, folhas, cores e vitalidade, logo após as primeiras chuvas outonais. Em seguida, o apodrecimento da matéria orgânica e a formação do húmus na terra escura.  
Fica clara a escolha do escorpião, portador do veneno dissolvente e tóxico, como a síntese imagética desse processo.       


Os espagiristas sabem bem a importância dessa época do ciclo solar. Seu trabalho é o apodrecimento dos materiais, o retorno ao negro absoluto e fétido, de modo que, alcançada a plena inércia e passividade, seja possível separar o sutil do espesso. É assim também com o homem: findo o corpo, jazente apenas o negro fétido, as cinzas, pode a alma enfim desprender-se, oitavar-se.   

Como diria o grande espagirista das almas ocidentais, “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”.