sexta-feira, 3 de julho de 2015

A Óctupla Morte



Número ambíguo e de reverberações sinistras, o oito há muito atrai minha imaginação aos seus fundos simbólicos.

Trata-se fundamentalmente do símbolo numérico dos saltos qualitativo-formais, das mudanças de plano ou escala. Daí sua relação tradicional com as imagens mortuárias. Nas catacumbas romanas, por exemplo, é comum a presença dos lábaros, formas óctuplas que deixam entrever um sentido de obra finalizada e transcendida, e portanto, de repouso eterno. 

Uma breve observação da escala musical não deixa dúvida quanto ao sentido universal dessa passagem. Após uma sequência natural de sete sons que vai do “dó” ao “si”, segue-se novamente o dó, mas não o mesmo dó, um “dó oitavado”, transmutado qualitativamente.     
    
Outras aplicações tradicionais do oito como imagem de passagem podem ser observadas na regra judaica de circuncisão ao oitavo dia do recém-nascido, bem como no formato octogonal das pias batismais antigas ou na ressurreição de Cristo ao oitavo dia da sua paixão. Ademais, as estruturas octogonais são tradicionalmente utilizadas nas construções de domos em templos de todas as tradições. Sendo a transição geométrica entre o quadrado e o círculo, a forma óctupla serve como ligação estrutural entre a parte inferior da construção, geralmente quadrada ou retangular e a cúpula redonda na parte superior. Não é gratuito lembrar que a tradição chinesa considera que a terra é quadrada e o céu, redondo, funcionando o octógono como a transição perfeita entre esses dois planos.       


Perceba que a obra completa e perfeita sempre foi simbolizada pelo número sete em todos os povos. A obviedade disso não escapa a praticamente ninguém criado em países de cultura cristã. Como se sabe, Deus criou o mundo, completou a sua obra escalar, em seis dias e no sétimo descansou.  À perfeição dessa obra criativa, segue-se um estágio bem mais escuro, relacionado ao fim ou destruição desse mesmo “cosmos” septenário. Não por acaso, oito é o número típico de Dionísio ou de Shiva. A ideia aqui é a morte renovadora, a dissolução intoxicante de todas as formas cristalizadas, a dança terrível de Shiva Nataraja.    



É curioso como geralmente as uvas usadas na formação da bebida dionisíaca, o vinho, são pisadas e reduzidas ao seu sumo durante o período anual do signo de Escorpião, o oitavo signo zodiacal, arquétipo astrológico da devastação estática.     

Esta época do ano, regida pelo signo de Escorpião, é marcada pela de morte da vegetação, pelo despojamento de todos os seus adornos, flores, folhas, cores e vitalidade, logo após as primeiras chuvas outonais. Em seguida, o apodrecimento da matéria orgânica e a formação do húmus na terra escura.  
Fica clara a escolha do escorpião, portador do veneno dissolvente e tóxico, como a síntese imagética desse processo.       


Os espagiristas sabem bem a importância dessa época do ciclo solar. Seu trabalho é o apodrecimento dos materiais, o retorno ao negro absoluto e fétido, de modo que, alcançada a plena inércia e passividade, seja possível separar o sutil do espesso. É assim também com o homem: findo o corpo, jazente apenas o negro fétido, as cinzas, pode a alma enfim desprender-se, oitavar-se.   

Como diria o grande espagirista das almas ocidentais, “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário