domingo, 28 de junho de 2015

O Senhor da Forma e a divinização às avessas


"O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico, da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga de água, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão — tudo são tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

O Senhor da Forma não significa as situações de vida em si que criamos para serem fisicamente ricas e seguras. Refere-se, antes, à preocupação neurótica que nos impele a criá-las, a tentar controlar a Natureza. O ego ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer irritação. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanças ou forçamos mudanças, tentamos criar um ninho ou um playground."

(Chogyam Trungpa, Além do materialismo espiritual)

Proponho nesse post uma reflexão sobre a Internet a partir do simbolismo dos "Três Senhores do Materialismo", utilizado no Budismo Tibetano e citado por Chogyam Trungpa no trecho acima. Segundo o autor, esses três senhores são o Senhor da Forma, o Senhor da Palavra e o Senhor da Mente. No mundo de hoje, o primeiro Senhor se manifesta principalmente em nosso busca neurótica por conforto, comodidade, segurança e prazer.

Atualmente, a Internet talvez seja a melhor forma de observar a atuação do Senhor da Forma: compramos de tudo com um toque de um botão, manipulamos imagens com photoshop, nos escondemos atrás de um teclado para emitir opiniões que jamais falaríamos em público, criamos amizades superficiais que só existem on line, temos acesso a todo tipo de prazer instantâneo e por aí vai. A atratividade desse ambiente virtual é exatamente e a segurança e o poder que ele proporciona: nos sentimentos seguros, livres da imprevisibilidade, dos riscos, das tristezas que a vida real proporciona:


A consequência disso é que criamos um mundinho hermeticamente fechado,  no qual somos todo-poderosos. O Senhor da Forma dá uma sensação de poder ao homem, tornando-o um deus. É uma espécie de divinização ao contrário: se todas as tradições espirituais e religiosas falam que o homem pode se divinizar porque, de alguma forma, participa da natureza divina, o Senhor da Forma torna um homem um deus porque faz a vontade humana ser a medida de todas as coisas. Achamos que o mundo gira em torno de nosso umbigo, que tudo deve se dobrar à nossa vontade porque podemos fazer de tudo apertando um botão.

Por isso, a única maneira de escapar das ilusões do Senhor da Forma é recusando essa divinização ao contrário. Usando um simbolismo cristão, é necessário uma kenosis (esvaziamento): se Cristo, sendo Deus, não quis ser reputado como Deus, mas assumiu a forma de servo e aceitou a cruz, nós devemos também renunciar à divinização do nosso ego para aceitar a realidade tal como ela é, e não como o Senhor da Forma nos apresenta. Ao invés de buscar a assepsia do mundo virtual para evitar aquilo que não gostamos ou não queremos, devemos aceitar essas situações como sinais saturninos que Deus nos envia para refletir sobre nossa própria condição. Somente assim é possível sair do nosso mundinho particular e nos abrir para o Infinito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário