Faz alguns dias em que estava matutando sobre a resposta do Reverendo Augusto Nicodemus sobre a dessacralização da cruz e dos símbolos cristãos . E tive um insight na sexta sobre um paralelo entre protestantismo e o filme Medeia, do diretor italiano, Pier Paolo Pasolini. Como não tive pressa, a Morte, esta confreira letal e certeira, publicou um interessante post sobre o tema. O que amplia meu interesse em complementá-lo, talvez como um desvaneio simbólico ou uma percepção completamente lunática do assunto.
Jasão
Ao ver o filme temos um dos protagonistas Jasão (Giuseppe Gentile), aquele que nasce criado por um centauro, elo simbólico que carrega em si o discurso racional e mito poético. Quando Jasão o vê em forma humana representa o racional, o descritivo e o analítico, quando em forma mítica de Centauro (meio homem e meio cavalo), a fala carregada de símbolos, mitos e um certo tom místico. Quando pequeno Jasão ouve os discursos racionais do Centauro e logo lhe chega o sono, a medida que cresce só lhe interessa o discurso racional, e só enxerga no centauro o seu lado homem. O mítico e simbólico não lhe cabem mais.
Centauro Homem
Ao retornar ao reino que seu tio roubou de seu pai, Jasão requer seu quinhão, seu reino que lhe é justo por direito hereditário, porém seu tio lhe incita a troca do Velocino de Ouro pelo reino. Para isto, Jason segue ao Reino de Iolcos, onde conquista o Velocino de Ouro e seduz, ou melhor, toma para si, a sacerdotisa Medeia (Maria Callas), que facilita sua fuga matando seu irmão rei para fugir com o amado. Ao chegar em seu reino, o Velocino de Ouro não tem mais o seu poder, ele só opera com eficácia e poder onde lhe é sagrado, na terra de Iolcos, onde a linguagem e a mística rege seu povo. Portanto o Tio não lhe reconhece o poder, com este simples amuleto ineficaz e não lhe cumpre a palavra para restaurar o reino de Corinto. Com Medeia se muda para Tessália, onde esta se aflige e se desespera, pois percebe que não há centro, não existe um eixo, um sentido místico e religioso civilizacional, e logo profetiza vai ruir, não se pode construir a civilização sem este centro (dharma, eixo, lei) simbólico. Com certa altivez Jason e seus amigos zombam e riem desta cena de aflição e clamor de Medeia. Entretanto ele se entrega a seu amor e lhe faz três filhos. Com passar dos tempos Medeia perde seu encanto de sacerdotisa, sua linguagem, se torna racional, o sentido místico e religioso que eram sedutores se resignam a meras lembranças. Jasão se desprende dela, a abandona e vive alegre e sorrateiro numa roda de amigos, ou seja num círculo fechado, apenas atento a um ponto externo, o poder conferido pelo Rei, o seu quinhão. Este, o Rei, lhe promete sua filha para casamento. Antes do casamento, Jasão tem uma recaída, se deita e se deleita com os encantos de Medeia, e se encanta com seus rebentos, os filhos desta união. Traída Medeia mata a futura esposa, o Tio de Jasão e seus filhos em comum. A trama choca e horroriza qualquer mentalidade moderna , especialmente feminina, que se escandaliza com o fato da mãe que mata seus filhos, aliás isto é a marca ou a fama desta tragédia grega na modernidade.
E o Nicodemus?
Por analogias diremos que Nicodemus é o Jasão, que cresce no protestantismo entre um mundo onde o centauro é muito mais homem que centauro. Mas que no seu cerne, e no fundo ainda há uma semente de centauro que por vezes se encontra sufocada. Dos mitos simbólicos bíblicos e da mística de Lutero (Centauro), aos discurso analítico e sistemático das Institutas de Calvino (Homem), dos frutos como a desmitologização por Rudolf Bultmann(nada mais homem que isto). Claro que dentro de uma vertente que sente-se feliz em reafirmar fundamentalista, Nicodemus, é alheio à Bultman na sua completa desmitologização da Bíblia, pois sempre ainda existe os encantos do Centauro e de Medeia, mas na prática o modus vivendi, a forma de viver ecclesea é o de Homem, muito mais perto de seu desafeto Bultman, daí a dessacralização alardeada pela nossa querida confreira morte.
Como Guenão e outros perenealistas alardearam o fruto do protestantismo é a secularização, onde o Centauro não tem vez, e nem sua parte homem o tem. Assim os discursos de Nicodemus parecem tão retrógrados à esta platéia moderna, que não se importa nem um pouco com os encantos de Medéia. Com isto o Velocino de Ouro não faz milagre, seu poder, sua mística são revelados somente àqueles que o reconhecem.
O mundo moderno é como Tessália constituído por três lemas imaginários de forma absoluta (igualdade, liberdade e fraternidade), que engendram ideologias vazias de significado metafísicos e simbólicos, quando destituídos de sua unidade, mas enraizados em uma materialidade efêmera. Então não existe eixo, dharma, nem centro, nem lei, logo este mundo vai ruir. Mas o nosso Jasão análogo adora construir com seus amigos neste mundo sem sentido simbólico e cheio de chatíssimas regras morais e justificativas racionalistas de fé. Realmente pueril como as risadas de Jasão e seus amigos ou quando ele brinca de roda no filme Medeia. Mas eles amam este mundo moderno, as suas benesses e por isto tomam posturas para agradar aqueles que só enxergam homens e não centauros. Estes que estão no poder são como o Tio de Jasão, o rei que oferece lugar de honra neste reino terreno, desde que você abandone Medeia e qualquer ponte com o mundo simbólico, antigo e tradicional. Afinal o que impera no reino atual é o físico, o mortal e o racional. Portanto não quero esgotar, nem muito menos matar neste assunto o uso de uma obra tão simbolicamente forte como este filme de Pasolini. Mas cada vez que Jasão se ilude com o reino, morre mais um filho espiritual seu com Medéia...
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