sábado, 13 de junho de 2015

Augustus Nicodemus Lopes e a dessacralização do mundo

Estava eu a navegar pela Internet quando me deparei com o seguinte texto, publicado pelo pastor presbiteriano Augustus Nicodemus Lopes em seu facebook [1]:

"NÃO ESTOU OFENDIDO

Quando vi as imagens da transexual "crucificada"na parada gay não me senti ofendido, como cristão. É óbvio que discordei da estratégia de marketing dos organizadores e sem dúvida percebi que o alvo era mesmo a provocação aos cristãos. Embora o episódio tenha sido justificado como sendo uma forma de expor a humilhação sofrida pelos gays, a impressão que dá é outra.

Mas, afora isto, não me senti provocado, atingido ou ofendido. Por uma razão simples. Ali não estava acontecendo uma profanação de objetos sagrados para mim - no caso, a cruz - simplesmente por que para mim uma cruz de madeira nada tem de sagrada nela. Meu cristianismo evangélico reformado não tem templos sagrados, objetos sagrados, images sagradas, símbolos sagrados ou líderes sagrados. Por isto não ficamos explodindo bombas quando zombam de Lutero, Zuinglio ou Calvino, quando tripudiam sobre a Bíblia ou quando picham as igrejas. E por isto eu não me sinto ofendido quando alguém usa uma cruz de madeira para suas manifestações anticristãs ou para outros objetivos.

As coisas que considero santas estão muito além do alcance dos homens, para que estes possam profaná-las. O meu Salvador está nos céus, o meu Deus é rei do universo, minha morada é celestial, a Palavra de Deus está escrita nos céus e é eterna, o pão e o vinho nada mais são que representações materiais daquele que se assenta no trono do universo. Realmente, não há nada no meu cristianismo que esteja ao alcance de quem deseja me ofender através da profanação.

Claro, para quem a cruz é sagrada, as imagens são sagradas, os templos são sagrados, seus líderes são sagrados... estes ficarão ofendidos. Eu os entendo. Devemos respeitar toda crença. Mas, no meu caso, uma transexual pendurada numa cruz provoca, no máximo, a confirmação do que eu já sei, que nenhum pecador consegue se livrar de Deus, ou daquilo que ele pensa que é Deus.

Só me vem à mente o Salmo 2:

1 Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:
3 Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.
"

A mensagem permite uma boa reflexão a respeito do caráter anti-tradicional do protestantismo, já enfatizado pelos autores da escola tradicionalista, particularmente René Guénon e Julius Evola. Isso porque o "cristianismo evangélico reformado" do pastor Nicodemus Lopes nada mais é do que uma manifestação incipiente (mas nem por isso menos real) de um dos aspectos principais da modernidade, a dessacralização do mundo.

Se para o cristianismo tradicional toda a realidade é sagrada, na medida em que é um símbolo do Criador e na medida em que serve de suporte para ascender até Ele [2], o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes rejeita toda e qualquer sacralidade na Criação. Como ele mesmo diz, as coisas santas "estão muito além do alcance dos homens". Num cristianismo como esse, cabe perguntar se é possível ainda haver lugar para a Encarnação do Verbo, cujo objetivo é exatamente restaurar a glória original da natureza humana, a imagem divina perdida com a Queda [3]. Como explica Santo Atanásio no livro Sobre a encarnação do Verbo, Cristo reconduz “à incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção [...]. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.”.

Por aí se pode compreender também a imensa pobreza simbólica que caracteriza o protestantismo brasileiro que, nesse ponto, segue fielmente a cartilha do "cristianismo evangélico reformado" de Augustus Nicodemus Lopes. Não há símbolos sagrados que possam servir de apoio para o crescimento espiritual do fiel. Não há imagens, nem preces canônicas, nem práticas espirituais devidamente estruturadas para aproximar o homem de Deus. Quando muito, há uma cruz ou um peixe, mantidos mais por costume do que por seu valor intrínseco.

A sequência do texto de Nicodemus Lopes mostra bem aonde chega o seu "cristianismo evangélico reformado". Para ele, a Palavra de Deus, sendo escrita no céus e eterna, obviamente não pode ser Cristo, o Verbo que se fez carne, mas a Bíblia. Ou seja, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, na verdade, é um "cristianismo islâmico" ou um "islamismo cristão":

"Com efeito, enquanto no Islã o Corão é a Palavra Divina, no Cristianismo é o Cristo vivo na Eucaristia que é o Verbo Divino, e não o Novo Testamento; este desempenha somente o papel de um suporte, do mesmo modo que o Profeta é só um suporte da mensagem divina, e não a própria mensagem. A lembrança, o exemplo e a intercessão do Profeta estão subordinados ao Livro revelado." (Frithjof Schuon, A unidade transcendente das religiões. São Paulo; IRGET, 2011).

A consequência disto é óbvia: se as coisas santas "estão muito além do alcance dos homens" e se a Palavra Divina está nos céus, não há Cristo vivo na Eucaristia. Como calvinista, Nicodemus Lopes ainda crê (ao menos teoricamente) que Cristo esteja presente na Eucaristia, embora essa presença seja puramente espiritual. Entretanto, toda sua linha de raciocínio torna impossível qualquer forma de manifestação do divino na realidade material, e não é por acaso que fala da Eucaristia como uma ambígua "representação material daquele que está assentado no trono do Universo". Ulrich Zwinglio, o teólogo protestante que negou qualquer forma de presença de Cristo na Eucaristia, certamente teria adorado essa definição de Nicodemus Lopes!

Entretanto, fazemos um elogio ao "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes se o chamamos de cristianismo islâmico, pois no islamismo ainda há espaço para relíquias, como as do profeta Muhammad conservadas em Istambul. Pelo contrário, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, por esquecer que a realidade material pode servir de suporte para influências espirituais [4], lembra mais o wahabbismo, a seita muçulmana responsável pela destruição de vários mausoléus, templos e lugares sagrados do islam.  

O cemitério de Al-Baqi, em Medina, onde se encontravam vários túmulos de familiares do profeta Muhammad venerados pelos xiitas...

...e, hoje, a mesma área, após a destruição promovida pelos wahabbitas em 1925.

Assim, podemos ver a verdadeira face desse "cristianismo evangélico reformado": sendo ele irmão siamês do fundamentalismo islâmico, sua consequência só pode ser destrutiva, embora adote uma face "tolerante" ao falar que "não ficamos explodindo bombas" ou que "devemos respeitar toda a crença". Na verdade, o "cristianismo evangélico reformado" de Augustus Nicodemus Lopes, bucha de canhão da modernidade, destrói por dentro: seu objetivo final é a dessacralização completa de tudo.


[1] https://www.facebook.com/AugustusNicodemusLopes/posts/923311247721287

[2] É o que explica, por exemplo, São Boaventura, em seu livro Itinerário da mente para Deus: "Podemos determinar que todas as criaturas desse mundo sensível levam a mente daquele que contempla e obtêm sabedoria à Deus. Pois são sombras, ecos, pinturas, traços, simulacros e reflexos daquele Primeiro Princípio." (cap. II)

[3] Se levado às últimas consequências, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes também perverte completamente o sentido da primazia do homem dentro da Criação: se todas as coisas foram criadas para o homem, ele deve usá-las como uma ponte para elevar-se até Deus. Entretanto, se nada no criado pode funcionar como ponte até Deus, já que as coisas sagradas estão num mundo celestial inacessível, resta compreender o reinado do homem sobre a Criação como um desfrute individualista, no qual ele faz o que bem entende da Criação...

[4] É o que mostra, por exemplo, a Arca da Aliança e a menção nos Atos dos apóstolos (19:12) aos aventais de São Paulo, que curavam enfermos e expulsavam demônios.


Nenhum comentário:

Postar um comentário