Li com prazer o textículo da supina
confreira, a Morte.
Excelente texto, ao qual somarei dois ou
três pitacos apenas, possibilidades outras de interpretação que me ocorreram
durante a leitura.
Parece-me de fato tratar-se da imagem de
uma hierogamia ou casamento alquímico entre a alma e o espírito. Ponto pra
Morte ínclita; mas gostaria de indicar mais alguns detalhes do magnus opus
que ficaram por desenvolver, de certo modo.
Ulisses é o sol, imagem do espírito, em
sua odisseia contínua pela eclíptica celeste. O astrólogo inglês John Frawley
demonstra em um dos seus cursos que a sequência de eventos da Odisseia segue
perfeitamente o simbolismo das casas mundanas da astrologia. O caráter
solar do herói fica evidente na ocasião da prova do arco proposta por
Penélope aos seus pretendentes. Quem dos presentes conseguisse dobrar o arco de
Ulisses e fazer passar uma flecha pelo pequeno furo de doze machados perfeitamente
alinhados no chão estaria apto a desposá-la.
A proposta de Penélope não foi casual.
Aquilo era exatamente o que fazia seu esposo, e o que faz o Sol todos os anos ao
trespassar os doze signos do zodíaco, em linha reta, através da eclíptica, sem
desviar a rota para cima ou para baixo.
Falamos o suficiente da inteligência solar.
Cuidemos da alma lunar, nossa feminina e sedutora Loreley
(Lóri).
Lorerey é uma figura conhecida do folclore
germânico, uma sereia que seduzia com seus cantos de mistério os navegantes, nas noites de lua cheia. Enleados pela voz alcoólica da sereia, os homens perdiam o leme do barco e se chocavam contra as
pedras.
Tantos homens desafortunados, forjados de
metais pouco madurados pela Natureza, desviaram seu curso até as pedras escuras,
mas não Ulisses. O curso do herói solar é constante, persistente e estável,
como o Tao do Céu.
Na Odisseia homérica, nenhuma das figuras femininas
parciais conseguiu enredar o herói e frustrá-lo em seu retorno até Ítaca. Definitivamente,
o destino de Ulisses não era o colo e as ancas de Circe, Nausicaa e Calypso. Ninguém
pode deter o sol, sua natureza é seguir adiante, sempre e sem desvio.
Seu destino é o leito da esposa real, “ataviada
como noiva adornada para o seu esposo”, como diz a Bíblia.
A saga do romance de Lispector é a da alma
que se prepara, que se transmuta de Circe, Nausicaa, Calypso, sereia, meretriz da
Babilônia, em noiva de vestes alvas e ataviada.
A primeira fase da obra alquímica é justamente
a da preparação da prata, da substância lunar plenamente receptiva à luz solar.
Curiosamente, um dos momentos centrais da
história é sua experiência iniciática nas águas do mar. Como bem indicou a confreira Morte em seu artigo, a imersão de Lori é comparável ao batismo, à
dissolução das formas cristalizadas do velho homem.
Não deixa de ser inquietante a descrição
da solitária cena noturna, sobretudo a presença aparentemente despropositada de
um cachorro preto que olha de longe:
"—
Um dia eu fui de madrugada ao mar sozinha, não tinha ninguém na praia, eu
entrei na água, só tinha um cachorro preto mas longe de mim!”
Trata-se aqui da conhecida separação do sutil
e do espesso. No cenário da solitária iniciação interior, os únicos presentes
são a alma lavada pelas águas marinhas e cão preto do corpo saturnino. O cão
preto de Lori é o corpo mortificado, putrefato, as cinzas que sobram no fundo
do atanor alquímico.
O despertar de Lori dessa iniciação não é ainda o final da obra total, mas seu inicio, como indica o próprio termo “iniciação”.
Do mesmo modo, a realização prefigurada no batismo não é o fim, mas o princípio
da caminhada cristã. Lori tornada Penélope precisa ainda esperar diligente a chegada do noivo, o tempo perfeito das núpcias sagradas em Ítaca.
Enquanto isso, ela costura e descostura os véus dos dias em seu tear divino.
Até o dia final, do qual quem entende não fala
muito, mas silencia e espera.
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