Dia desses recebi uma mensagem
anônima “conclusiva” sobre o Dharma hindu. Pelo tom sumário da reprimenda, fiquei
tentado a reencaminhar o “ask” à comunidade dos brâmanes, aconselhando que
fechassem de vez o boteco e entregassem aos cristãos, tomistas de preferência. Caio
Rossi e Sidney Silveira pra presidente e vice.
Segundo meu interlocutor, não
havia qualquer escapatória. Ele leu com diligência católica as críticas de Guénon
e Coomaraswamay à reencarnação de tipo espírita, e cotejou pacientemente com
diversos textos clássicos da Índia.
O resultado não deixava dúvidas:
vários textos sagrados hindus tendiam sim ao reencarnacionismo do tipo mais
grosseiro possível, antecipando historicamente as presepadas de Kardec. Segundo
o sujeito, a inglória tentativa guenoniana de distinguir a ideia moderna de
reencarnação dos conceitos tradicionais de “metempsicose” e “transmigração” não
lograva êxito em todos casos. Não obstante alguns textos aparentarem ocultar
sob as imagens fantásticas um sentido esotérico e superior, outros não deixam
divisar nada além de superstição bárbara e demoníaca. Para ilustrar sua
conclusão, o druida de internet citou trechos védicos que desaconselham a
prática de atos pecaminosos, sob pena de reencarnar como cachorro ou árvore ou
porquinho na casa de um shudra.
De uma vez por todas, e da forma mais simples e
resumida que eu consigo, sem recorrer à “terminologia bárbara”, gostaria de
tentar explicar o que um hindu quer dizer quando ele diz “fulaninho reencarnou
como cachorro”.
O ser humano é um todo unificado de três "camadas", (e
uma quarta ainda, que constitui sua raiz absolutamente transcendente, da qual
não nos ocuparemos aqui).
Das três camadas do fenômeno humano (corpo, alma e espírito), as duas primeiras estão fadadas a dissolver-se após a morte. O corpo, tão logo o
prana ou sopro vital deixa de fluir pelos nadis, entra em uma espiral rápida de desintegração. Em pouco
tempo, apenas os ossos jazem sob a terra. Mais um pouco de tempo e esses também
desvanecem.
Os elementos da psique também se dissolvem após a morte, muito embora esse processo não possa ser medido em escala humana
de tempo. Por esse motivo diz-se que a psique se dissolve “indefinidamente”, e isso,
meus amigos, é precisamente o que o cristão chama de inferno.
Pois bem, findo o processo de desintegração dos elementos
psicofísicos que compunham aquele sujeito em particular, resta o elemento
permanente do composto, o espírito ou inteligência.
E é precisamente aí que reside o pulo do gato dessa história
de reencarnação: ao contrário de uma pedra ou de um cachorro, a inteligência
não tem “forma própria”. Isso é estritamente necessário já que o ato da inteligência é justamente o de captar a forma essencial das coisas, de tudo o que é cognoscível. Pode-se dizer então que a inteligência tem a forma daquilo que ela compreende
efetivamente.
O sujeito, após o processo de morte do
corpo e da psique, torna-se precisamente aquilo que ele compreendeu em vida. Se ele, durante a vida, entendeu apenas a
forma de um bode preto, ele será espiritualmente um bode preto após a morte.
Não é difícil perceber que a “vida após a morte” ou a “imortalidade
da alma” só é possível para quem tenha compreendido a si mesmo em vida. A alma só é imortal na medida em
que ela é compreendida pela inteligência, já que esta é a única que perdura
após a morte. Perceba que, dessa perspectiva, o apelo ao autoconhecimento não
parece apenas um slogan hippie ou new age. Trata-se da própria salvação da
alma ou psique.
Dito isso, fica mais fácil entender o que pretende dizer
um “bárbaro oriental” ao afirmar que fulano reencarnou em um coelho. Se o horizonte de inteligência do sujeito, movida
a operar simplesmente por suas inclinações animais, não ultrapassou a
compreensão de formas exteriores como a de um coelho ou porquinho, certo que é que após a
morte, a inteligência do sujeito terá efetivamente a forma daquele coelho ou porquinho.
Então, como não dizer que, da próxima vez que nascer um bacon, ele será a reencarnação daquela inteligência de porco, ou literalmente, o “espírito de
porco” daquele que morreu??
Nenhum comentário:
Postar um comentário