Apesar da banalização promovida pela tietagem de fãs deslumbrados, as obras de Clarice Lispector apresentam uma riqueza inegável, o que permitiu que
fossem analisadas das mais variadas formas, inclusive a partir do esoterismo e
do simbolismo religioso. De fato, é bem conhecida a presença de símbolos e
temas ligados ao universo do sagrado nos textos da escritora, e uma das obras
que apresenta mais claramente essa preocupação é o romance "Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres", de 1969.
O enredo
do livro é relativamente simples: narra a história do envolvimento amoroso
entre Loreley (Lóri), a personagem principal, e Ulisses, bem como o processo de
amadurecimento pelo qual a protagonista passa até poder se entregar
definitivamente a seu amado. No entanto, para além dessa simples história de
amor, percebe-se em Lóri a tentativa de se comunicar com o que chama de "o
Deus", o que mostra uma preocupação mais profunda do que o mero desejo
sexual por Ulisses. Ao mesmo tempo, existe a presença marcante de símbolos
iniciáticos ao longo da narrativa, como se pode observar, por exemplo, no
episódio do banho de mar de Lóri:
"Lóri está sozinha. O mar salgado não é
sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. [...]
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio
que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria
é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário,
está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu
mais adormecido sono secular."
Toda a cena é representada como se
fosse um "batismo", anunciando uma mudança radical no estatuto da
personagem. Nesse caso, a menção ao "despertar" reforça ainda mais a
ideia de transformação comunicada pelo batismo no mar: se as águas, no
simbolismo tradicional das iniciações, simbolizam a dissolução das formas (a
fim de que seja engendrada uma nova existência no iniciado), o despertar indica
o fim do sono da vida vulgar, do qual o iniciado acorda para uma existência sobre-humana
[1].
Mais tarde, comentando esse acontecimento com Ulisses,
Lóri destaca que o que vivenciou é algo inexpressável, o que mostra um paralelo
com o papel fundamental do segredo na iniciação, uma vez que o conhecimento comunicado
por ela só pode ser realizado mediante uma vivência interior e, por isso, nunca
pode ser totalmente verbalizado:
"—
Um dia eu fui de madrugada ao mar sozinha, não tinha ninguém na praia, eu entrei
na água, só tinha um cachorro preto mas longe de mim!
Ele
olhou-a com atenção, a princípio como se não entendesse que significado invulgar
poderia haver naquela declaração emocionada. Afinal como se tivesse compreendido,
perguntou devagar:
—
Gostou?
—
Gostei, respondeu com humildade, e de vergonha seus olhos se encheram de lágrimas
que não caíam, só faziam com que parecessem duas poças plenas. Não, corrigiu-se
depois, procurando o termo exato, não é que tenha gostado. É outra coisa.
—
Melhor ou pior que gostar?
— Foi
tão diferente que não posso comparar."
A
presença desses símbolos iniciáticos nos permite reinterpretar o sentido da
própria história de amor entre Ulisses e Lóri. De fato, a busca de Loreley por
se aperfeiçoar até a entrega total a Ulisses é análoga à busca empreendida pelo
herói nas chamadas "viagens iniciáticas", narrativas que dramatizam o
esforço do adepto para transcender o estado humano. Em algumas dessas
narrativas, apresenta-se a figura da "mulher divina", símbolo do
conhecimento transcendente e da imortalidade [2], da qual Ulisses representa
uma espécie de versão masculina. Nesse caso, a busca de Lóri por se fundir em
Ulisses simboliza a transição para um outro estado de existência, pela
conquista da divinização:
"Já
duas semanas se haviam passado e Lóri sentia às vezes uma saudade tão grande
que era como uma fome. Só passaria quando ela comesse a presença de Ulisses.
Mas às vezes a saudade era tão profunda que a presença, calculava ela, seria
pouco; ela quereria absorver Ulisses todo. Essa vontade dela ser de Ulisses e
de Ulisses ser dela para uma unificação inteira era um dos sentimentos mais
urgentes que tivera na vida."
Para
finalizar, o fato de que o amante de Lóri se chame Ulisses também é bastante significativo,
uma vez que a narrativa da Odisséia
pode também ser interpretada como uma "viagem iniciática" [3]. Além
disso, a presença de um antepassado mítico ou divindade que transmite a
doutrina esotérica, tal como Ulisses no romance de Clarice Lispector é
responsável por educar Lóri em sua jornada, é outra característica dos ritos de
iniciação: "a 'morte' e a
'ressurreição' iniciatórias representam um processo religioso através do
qual o iniciado se torna outro, modelado de acordo com o modelo revelado por
deuses ou antepassados míticos.” (Mircea Eliade, Origens. Lisboa: Edições 70, 1989). Dessa forma, a fusão em
Ulisses, consumada na união sexual entre ele e Lóri ao final do livro [4], simboliza
o objetivo mesmo da iniciação: unir-se ao Absoluto, mediante a realização da
"Identidade Suprema".
[1]
Esse ensinamento aparece de forma clara no budismo: aquele que atinge a Iluminação ou Grande Despertar (maha-sambodhi)
torna-se um Buda, nome que não indica uma personalidade individual, mas um
estado supra-humano.
[2]
Nas novelas de cavalaria, a "mulher divina" era representada pela
dama a quem o cavaleiro devotava sua aventura: "A dama a quem o cavaleiro
jura uma fidelidade incondicional e a quem se vota também com frequência o
Cruzado, a dama que conduz à purificação, que o cavaleiro considera como sua
recompensa e que o tornará imortal quando morrer por ela, é essencialmente [...]
uma figuração para a 'Santa Sabedoria', uma encarnação, mais ou menos precisa
como tal, da 'mulher transcendente' ou 'divina', do poder de uma
espiritualidade transfiguradora e de uma vida que não se mistura com a morte."
(Julius Evola, Revolta contra o mundo
moderno. Lisboa: Dom Quixote, 1989).
[3]
Plotino, por exemplo, vê no retorno de Ulisses à Ítaca um símbolo da ascensão da
alma até o Uno (Enéadas I, 6, 8,
15-25)
[4]
O uso do simbolismo erótico para designar a união com o divino é lugar-comum na
literatura mística. A propósito, é digno de nota que Ulisses seja identificado
com Deus em certo momento da narrativa: "Enquanto estivesse viva teria que
rezar, o que não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e
representavam talvez Deus. Ulisses sobretudo."
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