quinta-feira, 28 de maio de 2015

O esoterismo de Clarice Lispector



Apesar da banalização promovida pela tietagem de fãs deslumbrados, as obras de Clarice Lispector apresentam uma riqueza inegável, o que permitiu que fossem analisadas das mais variadas formas, inclusive a partir do esoterismo e do simbolismo religioso. De fato, é bem conhecida a presença de símbolos e temas ligados ao universo do sagrado nos textos da escritora, e uma das obras que apresenta mais claramente essa preocupação é o romance "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres", de 1969.

O enredo do livro é relativamente simples: narra a história do envolvimento amoroso entre Loreley (Lóri), a personagem principal, e Ulisses, bem como o processo de amadurecimento pelo qual a protagonista passa até poder se entregar definitivamente a seu amado. No entanto, para além dessa simples história de amor, percebe-se em Lóri a tentativa de se comunicar com o que chama de "o Deus", o que mostra uma preocupação mais profunda do que o mero desejo sexual por Ulisses. Ao mesmo tempo, existe a presença marcante de símbolos iniciáticos ao longo da narrativa, como se pode observar, por exemplo, no episódio do banho de mar de Lóri:

"Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. [...]
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular."

Toda a cena é representada como se fosse um "batismo", anunciando uma mudança radical no estatuto da personagem. Nesse caso, a menção ao "despertar" reforça ainda mais a ideia de transformação comunicada pelo batismo no mar: se as águas, no simbolismo tradicional das iniciações, simbolizam a dissolução das formas (a fim de que seja engendrada uma nova existência no iniciado), o despertar indica o fim do sono da vida vulgar, do qual o iniciado acorda para uma existência sobre-humana [1].

Mais tarde, comentando esse acontecimento com Ulisses, Lóri destaca que o que vivenciou é algo inexpressável, o que mostra um paralelo com o papel fundamental do segredo na iniciação, uma vez que o conhecimento comunicado por ela só pode ser realizado mediante uma vivência interior e, por isso, nunca pode ser totalmente verbalizado:

"— Um dia eu fui de madrugada ao mar sozinha, não tinha ninguém na praia, eu entrei na água, só tinha um cachorro preto mas longe de mim!
Ele olhou-a com atenção, a princípio como se não entendesse que significado invulgar poderia haver naquela declaração emocionada. Afinal como se tivesse compreendido, perguntou devagar:
— Gostou?
— Gostei, respondeu com humildade, e de vergonha seus olhos se encheram de lágrimas que não caíam, só faziam com que parecessem duas poças plenas. Não, corrigiu-se depois, procurando o termo exato, não é que tenha gostado. É outra coisa.
— Melhor ou pior que gostar?
— Foi tão diferente que não posso comparar."

A presença desses símbolos iniciáticos nos permite reinterpretar o sentido da própria história de amor entre Ulisses e Lóri. De fato, a busca de Loreley por se aperfeiçoar até a entrega total a Ulisses é análoga à busca empreendida pelo herói nas chamadas "viagens iniciáticas", narrativas que dramatizam o esforço do adepto para transcender o estado humano. Em algumas dessas narrativas, apresenta-se a figura da "mulher divina", símbolo do conhecimento transcendente e da imortalidade [2], da qual Ulisses representa uma espécie de versão masculina. Nesse caso, a busca de Lóri por se fundir em Ulisses simboliza a transição para um outro estado de existência, pela conquista da divinização:

"Já duas semanas se haviam passado e Lóri sentia às vezes uma saudade tão grande que era como uma fome. Só passaria quando ela comesse a presença de Ulisses. Mas às vezes a saudade era tão profunda que a presença, calculava ela, seria pouco; ela quereria absorver Ulisses todo. Essa vontade dela ser de Ulisses e de Ulisses ser dela para uma unificação inteira era um dos sentimentos mais urgentes que tivera na vida."

Para finalizar, o fato de que o amante de Lóri se chame Ulisses também é bastante significativo, uma vez que a narrativa da Odisséia pode também ser interpretada como uma "viagem iniciática" [3]. Além disso, a presença de um antepassado mítico ou divindade que transmite a doutrina esotérica, tal como Ulisses no romance de Clarice Lispector é responsável por educar Lóri em sua jornada, é outra característica dos ritos de iniciação: "a 'morte' e a 'ressurreição' iniciatórias representam um processo religioso através do qual o iniciado se torna outro, modelado de acordo com o modelo revelado por deuses ou antepassados míticos.” (Mircea Eliade, Origens. Lisboa: Edições 70, 1989). Dessa forma, a fusão em Ulisses, consumada na união sexual entre ele e Lóri ao final do livro [4], simboliza o objetivo mesmo da iniciação: unir-se ao Absoluto, mediante a realização da "Identidade Suprema".


[1] Esse ensinamento aparece de forma clara no budismo: aquele que atinge a Iluminação ou Grande Despertar (maha-sambodhi) torna-se um Buda, nome que não indica uma personalidade individual, mas um estado supra-humano.

[2] Nas novelas de cavalaria, a "mulher divina" era representada pela dama a quem o cavaleiro devotava sua aventura: "A dama a quem o cavaleiro jura uma fidelidade incondicional e a quem se vota também com frequência o Cruzado, a dama que conduz à purificação, que o cavaleiro considera como sua recompensa e que o tornará imortal quando morrer por ela, é essencialmente [...] uma figuração para a 'Santa Sabedoria', uma encarnação, mais ou menos precisa como tal, da 'mulher transcendente' ou 'divina', do poder de uma espiritualidade transfiguradora e de uma vida que não se mistura com a morte." (Julius Evola, Revolta contra o mundo moderno. Lisboa: Dom Quixote, 1989).

[3] Plotino, por exemplo, vê no retorno de Ulisses à Ítaca um símbolo da ascensão da alma até o Uno (Enéadas I, 6, 8, 15-25)

[4] O uso do simbolismo erótico para designar a união com o divino é lugar-comum na literatura mística. A propósito, é digno de nota que Ulisses seja identificado com Deus em certo momento da narrativa: "Enquanto estivesse viva teria que rezar, o que não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e representavam talvez Deus. Ulisses sobretudo."

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