O que exatamente é o inferno? De acordo com a crença popular, particularmente Cristã, é que se trata de um local onde as almas condenadas serão punidas com fogo. Entretanto, uma rápida busca nos escritos dos grandes Padres, ou no caso de outras tradições, nos escritos de seus respectivos santos, mostra que a versão popular não descreve bem exatamente o que a tradição diz.
Os Cristãos Ortodoxos possuem um conceito um tanto diferente daquele dos Católicos Romanos. Primeiro que, para os Cristãos Ortodoxos, não há dogmas quanto a natureza do inferno, o que se aceita são os escritos dos Santos e a Doutrina Apostólica. Os escritos são considerados theologoumena, opiniões teológicas, mas não uma espécie de doutrina oficial da Igreja. O que é comumente aceito é que, a depender do estado espiritual da pessoa, essa experimentará de forma diferente a mesma presença de Deus. Assim, expondo o ponto de vista Cristão Ortodoxo, o Metropolita Hierotheos Vlachos escreve:
Paraíso e Inferno não existem do ponto de vista de Deus, mas somente no ponto de vista do homem. Deus envia sua graça para todos os homens, pois "Ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos." Se Deus nos dá um mandamento de amar todas as pessoas, até mesmo nossos inimigos, Ele faz o mesmo consigo. É impossível não amar os pecadores também. Mas cada pessoa sente o amor de Deus de forma diferente, de acordo com sua condição espiritual.
A luz tem duas propriedades, iluminação e causticidade. Se uma pessoa tem uma boa vista, ela se beneficia com a propriedade iluminadora do sol, a luz, e ele aprecia toda a criação. Mas, se outra pessoa é privada de seu olho, se ele se encontra sem vista, então ele sente a propriedade cáustica da luz. Assim será também na vida futura, bem como na vida da alma, depois de partir do corpo. Deus também amará os pecadores, mas eles não serão capazes de perceber esse amor como luz. Eles vão percebe-la como fogo, uma vez que eles não possuirão a visão e o olho espiritual. [1]
O Catolicismo Romano - mais dogmático e normativo quanto este tópico - tende a aceitar o inferno como um local (dentro da terra, como expresso por Santo Agostinho), embora existam opiniões, mais recentes, em que se falam que o inferno se trata de um estado espiritual e interpretem de forma mais simbólica.
Deixando de lado um pouco o ponto de vista religioso e buscando o que seria o Inferno do ponto de vista metafísico, o filosofo grego Christos Yannaras, escreve:
Se o sujeito humano existe como resultado da energia convocatória do incriado, essa sendo uma energia puramente amorosa, e se a resposta existencial ao convite não é uma aceitação, mas uma recusa, então nós podemos tirar daí uma de duas possíveis conclusões: Ou a recusa voluntária do criado destrói e invalida a energia amorosa voluntária do incriado, ou a energia voluntária do incriado, que é atemporal, também processa a recusa existencial atemporal do criado. A primeira possibilidade destrói a possibilidade lógica do que se é entendido por incriado. A segunda não.A possibilidade de existirmos depois da morte, mesmo quando nossa resposta existencial para o convite do incriado é uma recusa, é entendido na linguagem religiosa por "inferno" que, em grego, é icolasis. O significado primário para a palavra grega é truncamento, corte, cerceamento. O segundo significado é punição corretiva, tormento. A proposição com sentido que pode ser construída a partir de ambos sentidos da palavra grega para "inferno" refere-se ao caráter absoluto de um amor que respeita a liberdade firmemente, mesmo quando a liberdade hipostasia a recusa de uma reciprocidade amorosa. Neste caso, o corte-trucamento-cerceamento das possibilidades existenciais (possibilidade do ser como um relacionamento de amor) não resulta de uma deficiência de "graça" ou de uma oferta de energia que dá vida, mas de uma livre recusa do destinatário da graça em hipostatiza-la como um fato existencial de um relacionamento. Neste caso, também, "inferno" é apenas uma auto-punição voluntária, o tormento de uma existência que ativamente se auto-destrói sem ser capaz de anular sua estrutura hipostática. [2]
De forma mais incisiva, Frithjof Schuon, escreve:
O inferno é a resposta para a periferia que se faz de Centro ou para a multidão que usurpa a glória da Unidade; é a resposta da Realidade para o ego que pretende ser absoluto e que está condenado a existir, mas sem ser capaz de conseguir. O Centro é o Si "libertado", ou melhor, aquele que nunca deixou de ser livre - eternamente livre. [3]
Por último, gostaria de por outra citação, desta vez por Henry Corbin, onde ele fala sobre o estado infernal descrito pelas tradições iranianas pré-islâmicas:
O que nesta vida é desejado e aguardado é o que determinará a visão e a relação suprema no momento de sua morte. Ninguém pode esperar ter no outro mundo a visão daquilo que foi negado ou profanado, o que foi entregue as Trevas nesta vida. O mundo do anjo não poderá responder pelo homem que se recusou a respondê-lo; o daênâ não será mais que a abolição do passado celestial para aquele que recusou. Em contrapartida, a visão assustadora descrito nos textos mazdeos que são oferecidos ao homem demoníaco não é mais que uma caricatura do daênâ; é a visão do homem que entregue por sua própria negação em sua solidão não tem mais nada de seu próprio eu; a negação em que ele exclui seu próprio par celestial, e que é a marca da mutilação, da "estranheza" infernal, de um ser cuja essência era a paridade e a dualidade celestial. [4]
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NOTAS:
[1] Metropolitan of Nafpaktos Hierotheos - Life After Death
[2] Christos Yannaras - Postmodern Metaphysics
[3] Frithjof Schuon - Gnosis: Divine Wisdom
[4] Henry Corbin - L'Homme et Son Ange: Initiation et Chevalerie Spirituelle