sábado, 30 de maio de 2015

Apontamentos sobre o Inferno


O que exatamente é o inferno? De acordo com a crença popular, particularmente Cristã, é que se trata de um local onde as almas condenadas serão punidas com fogo. Entretanto, uma rápida busca nos escritos dos grandes Padres, ou no caso de outras tradições, nos escritos de seus respectivos santos, mostra que a versão popular não descreve bem exatamente o que a tradição diz.

Os Cristãos Ortodoxos possuem um conceito um tanto diferente daquele dos Católicos Romanos. Primeiro que, para os Cristãos Ortodoxos, não há dogmas quanto a natureza do inferno, o que se aceita são os escritos dos Santos e a Doutrina Apostólica. Os escritos são considerados theologoumena, opiniões teológicas, mas não uma espécie de doutrina oficial da Igreja. O que é comumente aceito é que, a depender do estado espiritual da pessoa, essa experimentará de forma diferente a mesma presença de Deus. Assim, expondo o ponto de vista Cristão Ortodoxo, o Metropolita Hierotheos Vlachos escreve:

Paraíso e Inferno não existem do ponto de vista de Deus, mas somente no ponto de vista do homem. Deus envia sua graça para todos os homens, pois "Ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos." Se Deus nos dá um mandamento de amar todas as pessoas, até mesmo nossos inimigos, Ele faz o mesmo consigo. É impossível não amar os pecadores também. Mas cada pessoa sente o amor de Deus de forma diferente, de acordo com sua condição espiritual. 
A luz tem duas propriedades, iluminação e causticidade. Se uma pessoa tem uma boa vista, ela se beneficia com a propriedade iluminadora do sol, a luz, e ele aprecia toda a criação. Mas, se outra pessoa é privada de seu olho, se ele se encontra sem vista, então ele sente a propriedade cáustica da luz. Assim será também na vida futura, bem como na vida da alma, depois de partir do corpo. Deus também amará os pecadores, mas eles não serão capazes de perceber esse amor como luz. Eles vão percebe-la como fogo, uma vez que eles não possuirão a visão e o olho espiritual.  [1]


O Catolicismo Romano - mais dogmático e normativo quanto este tópico - tende a aceitar o inferno como um local (dentro da terra, como expresso por Santo Agostinho), embora existam opiniões, mais recentes, em que se falam que o inferno se trata de um estado espiritual e interpretem de forma mais simbólica.

Deixando de lado um pouco o ponto de vista religioso e buscando o que seria o Inferno do ponto de vista metafísico, o filosofo grego Christos Yannaras, escreve:

 Se o sujeito humano existe como resultado da energia convocatória do incriado, essa sendo uma energia puramente amorosa, e se a resposta existencial ao convite não é uma aceitação, mas uma recusa, então nós podemos tirar daí uma de duas possíveis conclusões: Ou a recusa voluntária do criado destrói e invalida a energia amorosa voluntária do incriado, ou a energia voluntária do incriado, que é atemporal, também processa a recusa existencial atemporal do criado. A primeira possibilidade destrói a possibilidade lógica do que se é entendido por incriado. A segunda não.A possibilidade de existirmos depois da morte, mesmo quando nossa resposta existencial para o convite do incriado é uma recusa, é entendido na linguagem religiosa por "inferno" que, em grego, é icolasis. O significado primário para a palavra grega é truncamento, corte, cerceamento. O segundo significado é punição corretiva, tormento. A proposição com sentido que pode ser construída a partir de ambos sentidos da palavra grega para "inferno" refere-se ao caráter absoluto de um amor que respeita a liberdade firmemente, mesmo quando a liberdade hipostasia a recusa de uma reciprocidade amorosa. Neste caso, o corte-trucamento-cerceamento das possibilidades existenciais (possibilidade do ser como um relacionamento de amor) não resulta de uma deficiência de "graça" ou de uma oferta de energia que dá vida, mas de uma livre recusa do destinatário da graça em hipostatiza-la como um fato existencial de um relacionamento. Neste caso, também, "inferno" é apenas uma auto-punição voluntária, o tormento de uma existência que ativamente se auto-destrói sem ser capaz de anular sua estrutura hipostática. [2]

De forma mais incisiva, Frithjof Schuon, escreve:

 O inferno é a resposta para a periferia que se faz de Centro ou para a multidão que usurpa a glória da Unidade; é a resposta da Realidade para o ego que pretende ser absoluto e que está condenado a existir, mas sem ser capaz de conseguir. O Centro é o Si "libertado", ou melhor, aquele que nunca deixou de ser livre - eternamente livre. [3]

Por último, gostaria de por outra citação, desta vez por Henry Corbin, onde ele fala sobre o estado infernal descrito pelas tradições iranianas pré-islâmicas:

O que nesta vida é desejado e aguardado é o que determinará a visão e a relação suprema no momento de sua morte. Ninguém pode esperar ter no outro mundo a visão daquilo que foi negado ou profanado, o que foi entregue as Trevas nesta vida. O mundo do anjo não poderá responder pelo homem que se recusou a respondê-lo; o daênâ não será mais que a abolição do passado celestial para aquele que recusou. Em contrapartida, a visão assustadora descrito nos textos mazdeos que são oferecidos ao homem demoníaco não é mais que uma caricatura do daênâ; é a visão do homem que entregue por sua própria negação em sua solidão não tem mais nada de seu próprio eu; a negação em que ele exclui seu próprio par celestial, e que é a marca da mutilação, da "estranheza" infernal, de um ser cuja essência era a paridade e a dualidade celestial. [4]


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

NOTAS:
[1] Metropolitan of Nafpaktos Hierotheos - Life After Death
[2] Christos Yannaras - Postmodern Metaphysics
[3] Frithjof  Schuon - Gnosis: Divine Wisdom
[4] Henry Corbin - L'Homme et Son Ange: Initiation et Chevalerie Spirituelle

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Temperando simbolicamente o castelo da Disney...



Neste primeiro post busco a percepção simbólica dos quatro elementos e o mundo encantado de Disney na TV. Assim convido aos leitores a irmos a infância onde residem nossas primeiras lembranças. Sempre fui um aficionado em desenho animado, lembro me com carinho das tardes em que passava em frente da TV e nas manhãs de sábado a ver meus personagens preferidos da Disney. Com tantas horas de desenhos assistidos algumas marcas foram deixadas por estes personagens pueris. Ou estes personagens que povoam a formação do meu primeiro imaginário e às vezes também o do leitor, seriam estéreis em significados? Seria o Pato Donald mais uma voz engraçada que ecoa em minha lembrança infantil? Ou de algum trote famoso dos primórdios da internet na minha juventude? Seria o Mickey simplesmente um boa praça bem disposto a arrumar um jardim? E o Pluto um constante amigo de caça ou uma constante vítima de ciúmes do gatinho Fígaro? E o Pateta seria o eterno senhor volante?   



Quatro temperamentos são os que se baseiam nos quatro elementos (ar, fogo, terra e água) a saber: Colérico ou Bilioso (fogo), Sanguíneo (ar),  Fleumático ou Linfático (água)  e Melancólico ou Nervoso (terra).


Todo a psicologia antiga era inspirada na divisão destes quatro temperamentos. Estes temperamentos são características hereditárias com preponderância de influências fisiológicas dos fluídos corporais e energéticos, praticamente toda medicina tradicional (ayurvédica, chinesa e medieval)  opera de certa forma em cima da combinação destes quatro temperamentos, sendo que algumas tradições alinharam outros símbolos para combinação destes elementos. 

                                   Terra      Água        Ar        Fogo

Os temperamentos podem ser notas que temperam (e operam) simbolicamente na nossa personalidade e nas mais diversas formas como interagimos com o mundo. Atribuir uma correlação às castas hindus não seria incorreto mesmo que um pouco impreciso, portanto os Brâmanes ou casta sacerdotal corresponderiam aos sanguíneos, os Kṣatriyas ou casta dos governantes corresponderiam aos coléricos, , os  Vaixás ou casta comerciante corresponderiam aos melancólicos e os  shudras ou casta servil corresponderiam aos fleumáticos.





E o Mickey?






Sanguíneo

Sua primeira aparição foi em 1928 liderando a construção de um avião, depois disso ele sempre foi o líder e o cabeça da turma toda. Sempre aparece de forma a pensar, arquitetar e resolver os problemas da turma. Ele simboliza todo o grupo Disney, se você passa as férias na Disney ou conhece alguém que foi, volta com umas orelhinhas na cabeça, ou seja ele literalmente faz a cabeça. Sempre aparece como pensante: como maestro, líder das caçadas, arquiteto das construções. Os dilemas a serem solucionados as buscas pelos mistérios, a justiça a ser realizada. Sempre como alguém sacerdotal, o sanguíneo o que pensa e transcende o problema ou o mundo sensível. Não raro, é aéreo nas coisas que faz, esquece ferramentas, e a maioria do drama dos desenhos é em virtude deste desajeito.







Colérico

O Pato Donald quase sempre aparece com trajes de marinheiro (uma função) ou remetendo a ação de um navegante, alguém que se lança ao mar de novas aventuras. É claro que é caricato sempre tende a fazer as coisas do seu jeito, impaciente sempre busca seus objetivos. Como o carneiro montanhês ou o signo de Áries, todos que mexem com ele, de pronto e impensado já recebem sua fúria. Sempre aparece executando planos e tarefas, sua maior imprudência é fruto de sua ansiedade. Seus maiores problemas lidar com os outro integrantes do mundo externo que prejudicam sua ação.







Melancólico

Pluto e seu osso... Pluto e sua casa... Pluto e seu bolo... Pluto e seu dono! Posses, ter, a materialização dos desejos e ações. Pluto geralmente não reconhece os outros, sua relação é de posse e de troca. No desenho acima seu afeto é construído pelo compartilhamento do osso. O Diabinho e o Anjinho simbolizam sua consciência em relação aos ciúmes da cama, da bola, do cobertor e do dono! Suas relações são geralmente vistas como terrenas.  Sua angústia esta relacionada com o não ter, através da ausência material se constrói sua melancolia.






Fleumático

O Pateta e o mundo dos sentimentos. Sempre buscando sensações de prazer, aventura e alegria. Seria desfrutar uma rede numa cobertura, encher os pulmões de fumaça de tabaco ou se sentir o maioral ou melhor motorista no trânsito. Sempre nos faz rir, quem não gosta de um personagem sensível e amável? Que sempre apela pelos nossos sentimentos com suas atrapalhadas. Seja no dengo de uma febre ou num carisma de uma aula onde ajunta, ajunta, ajunta(haja água) várias técnicas para chamar atenção dos alunos. Ele não se satisfaz nunca, mas em um outro episódio estará nos emocionando com alguma outra trapalhada ou será patetada!?!









Reencarnando como bacon







Dia desses recebi uma mensagem anônima “conclusiva” sobre o Dharma hindu. Pelo tom sumário da reprimenda, fiquei tentado a reencaminhar o “ask” à comunidade dos brâmanes, aconselhando que fechassem de vez o boteco e entregassem aos cristãos, tomistas de preferência. Caio Rossi e Sidney Silveira pra presidente e vice. 

Segundo meu interlocutor, não havia qualquer escapatória. Ele leu com diligência católica as críticas de Guénon e Coomaraswamay à reencarnação de tipo espírita, e cotejou pacientemente com diversos textos clássicos da Índia.

O resultado não deixava dúvidas: vários textos sagrados hindus tendiam sim ao reencarnacionismo do tipo mais grosseiro possível, antecipando historicamente as presepadas de Kardec. Segundo o sujeito, a inglória tentativa guenoniana de distinguir a ideia moderna de reencarnação dos conceitos tradicionais de “metempsicose” e “transmigração” não lograva êxito em todos casos. Não obstante alguns textos aparentarem ocultar sob as imagens fantásticas um sentido esotérico e superior, outros não deixam divisar nada além de superstição bárbara e demoníaca. Para ilustrar sua conclusão, o druida de internet citou trechos védicos que desaconselham a prática de atos pecaminosos, sob pena de reencarnar como cachorro ou árvore ou porquinho na casa de um shudra.         

 De uma vez por todas, e da forma mais simples e resumida que eu consigo, sem recorrer à “terminologia bárbara”, gostaria de tentar explicar o que um hindu quer dizer quando ele diz “fulaninho reencarnou como cachorro”.

O ser humano é um todo unificado de três "camadas", (e uma quarta ainda, que constitui sua raiz absolutamente transcendente, da qual não nos ocuparemos aqui).    

Das três camadas do fenômeno humano (corpo, alma e espírito), as duas primeiras estão fadadas a dissolver-se após a morte. O corpo, tão logo o prana ou sopro vital deixa de fluir pelos nadis, entra em uma espiral rápida de desintegração. Em pouco tempo, apenas os ossos jazem sob a terra. Mais um pouco de tempo e esses também desvanecem.   

Os elementos da psique também se dissolvem após a morte, muito embora esse processo não possa ser medido em escala humana de tempo. Por esse motivo diz-se que a psique se dissolve “indefinidamente”, e isso, meus amigos, é precisamente o que o cristão chama de inferno.         

Pois bem, findo o processo de desintegração dos elementos psicofísicos que compunham aquele sujeito em particular, resta o elemento permanente do composto, o espírito ou inteligência. 

E é precisamente aí que reside o pulo do gato dessa história de reencarnação: ao contrário de uma pedra ou de um cachorro, a inteligência não tem “forma própria”. Isso é estritamente necessário já que o ato da inteligência é justamente o de captar a forma essencial das coisas, de tudo o que é cognoscível. Pode-se dizer então que a inteligência tem a forma daquilo que ela compreende efetivamente.     

O sujeito, após o processo de morte do corpo e da psique, torna-se precisamente aquilo que ele compreendeu em vida.  Se ele, durante a vida, entendeu apenas a forma de um bode preto, ele será espiritualmente um bode preto após a morte.        

Não é difícil perceber que a “vida após a morte” ou a “imortalidade da alma” só é possível para quem tenha compreendido a si mesmo em vida. A alma só é imortal na medida em que ela é compreendida pela inteligência, já que esta é a única que perdura após a morte. Perceba que, dessa perspectiva, o apelo ao autoconhecimento não parece apenas um slogan hippie ou new age. Trata-se da própria salvação da alma ou psique.     

Dito isso, fica mais fácil entender o que pretende dizer um “bárbaro oriental” ao afirmar que fulano reencarnou em um coelho.  Se o horizonte de inteligência do sujeito, movida a operar simplesmente por suas inclinações animais, não ultrapassou a compreensão de formas exteriores como a de um coelho ou porquinho, certo que é que após a morte, a inteligência do sujeito terá efetivamente a forma daquele coelho ou porquinho.

Então, como não dizer que, da próxima vez que nascer um bacon, ele será a reencarnação daquela inteligência de porco, ou literalmente, o “espírito de porco” daquele que morreu??       


Considerações sobre o esoterismo de Clarice.... Hieros gamos



Li com prazer o textículo da supina confreira, a Morte.

Excelente texto, ao qual somarei dois ou três pitacos apenas, possibilidades outras de interpretação que me ocorreram durante a leitura.

Parece-me de fato tratar-se da imagem de uma hierogamia ou casamento alquímico entre a alma e o espírito. Ponto pra Morte ínclita; mas gostaria de indicar mais alguns detalhes do magnus opus que ficaram por desenvolver, de certo modo.

Ulisses é o sol, imagem do espírito, em sua odisseia contínua pela eclíptica celeste. O astrólogo inglês John Frawley demonstra em um dos seus cursos que a sequência de eventos da Odisseia segue perfeitamente o simbolismo das casas mundanas da astrologia. O caráter solar do herói fica evidente na ocasião da prova do arco proposta por Penélope aos seus pretendentes. Quem dos presentes conseguisse dobrar o arco de Ulisses e fazer passar uma flecha pelo pequeno furo de doze machados perfeitamente alinhados no chão estaria apto a desposá-la.  

A proposta de Penélope não foi casual. Aquilo era exatamente o que fazia seu esposo, e o que faz o Sol todos os anos ao trespassar os doze signos do zodíaco, em linha reta, através da eclíptica, sem desviar a rota para cima ou para baixo.     

Falamos o suficiente da inteligência solar. Cuidemos da alma lunar, nossa feminina e sedutora Loreley (Lóri).

Lorerey é uma figura conhecida do folclore germânico, uma sereia que seduzia com seus cantos de mistério os navegantes, nas noites de lua cheia. Enleados pela voz alcoólica da sereia, os homens perdiam o leme do barco e se chocavam contra as pedras.    


      
Tantos homens desafortunados, forjados de metais pouco madurados pela Natureza, desviaram seu curso até as pedras escuras, mas não Ulisses. O curso do herói solar é constante, persistente e estável, como o Tao do Céu.

Na Odisseia homérica, nenhuma das figuras femininas parciais conseguiu enredar o herói e frustrá-lo em seu retorno até Ítaca. Definitivamente, o destino de Ulisses não era o colo e as ancas de Circe, Nausicaa e Calypso. Ninguém pode deter o sol, sua natureza é seguir adiante, sempre e sem desvio.

Seu destino é o leito da esposa real, “ataviada como noiva adornada para o seu esposo”, como diz a Bíblia.                

A saga do romance de Lispector é a da alma que se prepara, que se transmuta de Circe, Nausicaa, Calypso, sereia, meretriz da Babilônia, em noiva de vestes alvas e ataviada.    

A primeira fase da obra alquímica é justamente a da preparação da prata, da substância lunar plenamente receptiva à luz solar.   

Curiosamente, um dos momentos centrais da história é sua experiência iniciática nas águas do mar. Como bem indicou a confreira Morte em seu artigo, a imersão de Lori é comparável ao batismo, à dissolução das formas cristalizadas do velho homem. 

Não deixa de ser inquietante a descrição da solitária cena noturna, sobretudo a presença aparentemente despropositada de um cachorro preto que olha de longe:

"— Um dia eu fui de madrugada ao mar sozinha, não tinha ninguém na praia, eu entrei na água, só tinha um cachorro preto mas longe de mim!”  

Trata-se aqui da conhecida separação do sutil e do espesso. No cenário da solitária iniciação interior, os únicos presentes são a alma lavada pelas águas marinhas e cão preto do corpo saturnino. O cão preto de Lori é o corpo mortificado, putrefato, as cinzas que sobram no fundo do atanor alquímico.  



O despertar de Lori dessa iniciação não é ainda o final da obra total, mas seu inicio, como indica o próprio termo “iniciação”. Do mesmo modo, a realização prefigurada no batismo não é o fim, mas o princípio da caminhada cristã.  Lori tornada Penélope precisa ainda esperar diligente a chegada do noivo, o tempo perfeito das núpcias sagradas em Ítaca. Enquanto isso, ela costura e descostura os véus dos dias em seu tear divino.     

Até o dia final, do qual quem entende não fala muito, mas silencia e espera.   




quinta-feira, 28 de maio de 2015

O esoterismo de Clarice Lispector



Apesar da banalização promovida pela tietagem de fãs deslumbrados, as obras de Clarice Lispector apresentam uma riqueza inegável, o que permitiu que fossem analisadas das mais variadas formas, inclusive a partir do esoterismo e do simbolismo religioso. De fato, é bem conhecida a presença de símbolos e temas ligados ao universo do sagrado nos textos da escritora, e uma das obras que apresenta mais claramente essa preocupação é o romance "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres", de 1969.

O enredo do livro é relativamente simples: narra a história do envolvimento amoroso entre Loreley (Lóri), a personagem principal, e Ulisses, bem como o processo de amadurecimento pelo qual a protagonista passa até poder se entregar definitivamente a seu amado. No entanto, para além dessa simples história de amor, percebe-se em Lóri a tentativa de se comunicar com o que chama de "o Deus", o que mostra uma preocupação mais profunda do que o mero desejo sexual por Ulisses. Ao mesmo tempo, existe a presença marcante de símbolos iniciáticos ao longo da narrativa, como se pode observar, por exemplo, no episódio do banho de mar de Lóri:

"Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. [...]
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular."

Toda a cena é representada como se fosse um "batismo", anunciando uma mudança radical no estatuto da personagem. Nesse caso, a menção ao "despertar" reforça ainda mais a ideia de transformação comunicada pelo batismo no mar: se as águas, no simbolismo tradicional das iniciações, simbolizam a dissolução das formas (a fim de que seja engendrada uma nova existência no iniciado), o despertar indica o fim do sono da vida vulgar, do qual o iniciado acorda para uma existência sobre-humana [1].

Mais tarde, comentando esse acontecimento com Ulisses, Lóri destaca que o que vivenciou é algo inexpressável, o que mostra um paralelo com o papel fundamental do segredo na iniciação, uma vez que o conhecimento comunicado por ela só pode ser realizado mediante uma vivência interior e, por isso, nunca pode ser totalmente verbalizado:

"— Um dia eu fui de madrugada ao mar sozinha, não tinha ninguém na praia, eu entrei na água, só tinha um cachorro preto mas longe de mim!
Ele olhou-a com atenção, a princípio como se não entendesse que significado invulgar poderia haver naquela declaração emocionada. Afinal como se tivesse compreendido, perguntou devagar:
— Gostou?
— Gostei, respondeu com humildade, e de vergonha seus olhos se encheram de lágrimas que não caíam, só faziam com que parecessem duas poças plenas. Não, corrigiu-se depois, procurando o termo exato, não é que tenha gostado. É outra coisa.
— Melhor ou pior que gostar?
— Foi tão diferente que não posso comparar."

A presença desses símbolos iniciáticos nos permite reinterpretar o sentido da própria história de amor entre Ulisses e Lóri. De fato, a busca de Loreley por se aperfeiçoar até a entrega total a Ulisses é análoga à busca empreendida pelo herói nas chamadas "viagens iniciáticas", narrativas que dramatizam o esforço do adepto para transcender o estado humano. Em algumas dessas narrativas, apresenta-se a figura da "mulher divina", símbolo do conhecimento transcendente e da imortalidade [2], da qual Ulisses representa uma espécie de versão masculina. Nesse caso, a busca de Lóri por se fundir em Ulisses simboliza a transição para um outro estado de existência, pela conquista da divinização:

"Já duas semanas se haviam passado e Lóri sentia às vezes uma saudade tão grande que era como uma fome. Só passaria quando ela comesse a presença de Ulisses. Mas às vezes a saudade era tão profunda que a presença, calculava ela, seria pouco; ela quereria absorver Ulisses todo. Essa vontade dela ser de Ulisses e de Ulisses ser dela para uma unificação inteira era um dos sentimentos mais urgentes que tivera na vida."

Para finalizar, o fato de que o amante de Lóri se chame Ulisses também é bastante significativo, uma vez que a narrativa da Odisséia pode também ser interpretada como uma "viagem iniciática" [3]. Além disso, a presença de um antepassado mítico ou divindade que transmite a doutrina esotérica, tal como Ulisses no romance de Clarice Lispector é responsável por educar Lóri em sua jornada, é outra característica dos ritos de iniciação: "a 'morte' e a 'ressurreição' iniciatórias representam um processo religioso através do qual o iniciado se torna outro, modelado de acordo com o modelo revelado por deuses ou antepassados míticos.” (Mircea Eliade, Origens. Lisboa: Edições 70, 1989). Dessa forma, a fusão em Ulisses, consumada na união sexual entre ele e Lóri ao final do livro [4], simboliza o objetivo mesmo da iniciação: unir-se ao Absoluto, mediante a realização da "Identidade Suprema".


[1] Esse ensinamento aparece de forma clara no budismo: aquele que atinge a Iluminação ou Grande Despertar (maha-sambodhi) torna-se um Buda, nome que não indica uma personalidade individual, mas um estado supra-humano.

[2] Nas novelas de cavalaria, a "mulher divina" era representada pela dama a quem o cavaleiro devotava sua aventura: "A dama a quem o cavaleiro jura uma fidelidade incondicional e a quem se vota também com frequência o Cruzado, a dama que conduz à purificação, que o cavaleiro considera como sua recompensa e que o tornará imortal quando morrer por ela, é essencialmente [...] uma figuração para a 'Santa Sabedoria', uma encarnação, mais ou menos precisa como tal, da 'mulher transcendente' ou 'divina', do poder de uma espiritualidade transfiguradora e de uma vida que não se mistura com a morte." (Julius Evola, Revolta contra o mundo moderno. Lisboa: Dom Quixote, 1989).

[3] Plotino, por exemplo, vê no retorno de Ulisses à Ítaca um símbolo da ascensão da alma até o Uno (Enéadas I, 6, 8, 15-25)

[4] O uso do simbolismo erótico para designar a união com o divino é lugar-comum na literatura mística. A propósito, é digno de nota que Ulisses seja identificado com Deus em certo momento da narrativa: "Enquanto estivesse viva teria que rezar, o que não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e representavam talvez Deus. Ulisses sobretudo."