sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A mão esquerda de Deus


"Pois assim como Deus em sua natureza é incomensurável, incompreensível
e infinito, ele é intolerável para a natureza humana." (Martinho Lutero)


Dia desses, navegando pela Internet, encontrei um texto no melhor estilo Richard Dawkins de argumentação tosca. Para dizer a verdade, o texto não tem nenhuma argumentação: é apenas uma coletânea de citações sobre os massacres do Antigo Testamento, mas que mal escondem o escândalo do autor diante de tanta morte e destruição. É impossível que esses textos sejam inspirados por Deus, conclui o neo-ateu enrustido. Quod erat demonstrandum!

O que nosso brilhante autor esquece é que Deus não é um serzinho à nossa imagem e semelhança. Deus é infinito, o homem é finito: “finito” e “infinito” não são termos simétricos [1]. A bondade de Deus não é a nossa bondade e, por isso, Deus não pode ser “condenado” pelos mesmos padrões morais que julgam as ações humanas. Se tudo foi criado do nada e de graça por Deus, o que impede que Ele jogue tudo de novo no nada? A criação só existe enquanto Deus quer e como Ele quer, e não por acaso, um dos atributos divinos mais enfatizados pelo Antigo Testamento é o caráter "terrível" de Iavé:

“E todos os moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera no exército do céu e entre os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?”  (Daniel 4:35)

O carola moralista pode ficar espantado com isso e até tomar as dores do aspirante a Dawkins mencionado no início. Como Deus pode ser esse tirano que age arbitrariamente? Como alguém pode amar um Deus que seja mais assustador que o diabo? Acredito que a resposta (para escândalo do carola) está em Shiva, o “destruidor dos mundos” na trimurti hindu:


“Shiva é um destruidor e adora os locais da cremação. Mas o que é que Ele destrói? Não apenas os céus e a terra no fechar de cada ciclo do mundo, mas os grilhões que amarram cada alma individual. Onde e o que é o campo da cremação? Não é o local onde os nossos corpos terrenos são cremados, mas os corações dos Seus amantes, depostos, desperdiçados e desolados. O local onde o ego é destruído significa o estado onde a ilusão e as acções são incineradas: isto é o crematório, o campo da cremação onde Sri Natarâja dança, e daí Ele é chamado Sudalaiyâdi, Dançarino dos campos crematórios. (Ananda Coomaraswamy, A dança de Shiva)

Shiva é o equivalente hindu do “Deus terrível” do Antigo Testamento e, assim como ele, está associado à morte e à destruição. Na dança de Shiva, tudo é destruído, mas esse aspecto negativo é relativo apenas ao nosso ponto de vista limitado. Do lado de lá, há apenas luz e êxtase, pois Shiva e Vishnu, o mantenedor dos mundos, são um só. De fato, a dança de Shiva é também repleta de misericórdia, por nela são igualmente destruídos todos os laços que nos prendem a esse mundo. Da mesma forma, Deus ceifa aquilo que ele mesmo deu para destruir nosso apego às coisas, para que elas não se transformem em “deuses” para nós.

Se Deus dispõe da criação conforme Ele quer, nem por isso Suas ações são desprovidas de bondade: apenas nós que às vezes não conseguimos compreendê-la. Por isso, aquele que quer realmente amar a Deus acima de todas as coisas deve ir além do moralismo carola. Seu exemplo deve ser o de Jó, que após ter toda a sua vida destruída com a permissão de Deus, ainda pôde dizer: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.” (Jó 1:20).

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[1] "Podemos fazer compreender essa assimetria por uma observação de aplicação corrente, que provém simplesmente da lógica comum: se considerarmos um atributo ou uma qualidade qualquer, podemos dividir todas as coisas possíveis em dois grupos, que são, de um lado, o das coisas que possuem esta qualidade, e de outro as que não a possuem; mas, enquanto que o primeiro grupo se acha assim definido e determinado positivamente, o segundo, que só está caracterizado de modo puramente negativo, não está por isso limitado e é verdadeiramente indefinido; não existe assim simetria, nem medida comum entre estes dois grupos, que assim não constituem realmente uma divisão binária, e cuja distinção só vale do ponto de vista especial da qualidade tomada como ponto de partida, pois o segundo grupo não possui nenhuma homogeneidade e pode compreender coisas que não tem nada em comum entre si, o que não impede que esta divisão seja válida sob o aspecto considerado." (René Guénon, O homem e seu devir segundo o vedanta)

sábado, 11 de julho de 2015

A Grande Obra de José

As ciências herméticas tem como patrono a figura mitológica de Hermes, o mensageiro dos deuses, conhecido entre os romanos como Mercúrio. Representado com asas nos pés, símbolo de sua agilidade e flexibilidade, Hermes é aquele que faz a ligação entre os vários planos da realidade, manifestando para os homens as verdades transcendentes.



Por isso, Hermes é associado também aos oniromantes, aos videntes e a todos aqueles que são os intérpretes da vontade divina, como José, um dos doze filhos do patriarca Jacó. Porém, os paralelos entre José e Hermes não param por aí. Por isso, nesse post, pretendo analisar a narrativa da vida de José a partir do simbolismo astrológico e alquímico. 

Invejado por ser o filho predileto de Jacó, José foi vendido pelos próprios irmãos como escravo. Temos aqui a fase do nigredo, representado simbolicamente por Saturno, o deus que foi deposto de seu domínio e aprisionado no Tártaro. Da mesma forma, antes de ser vendido, José foi lançado numa cisterna e perdeu a túnica multicolorida que tinha ganhado de seu pai, o que remete ao símbolo bíblico do arco-íris como aliança entre o Céu e a Terra. 


Como o acordo entre Céu e Terra foi perdido, é necessário reconquistá-lo mediante a realização da Obra hermética. Entretanto, ela deve começar em Saturno, o chumbo que é o ponto de partida para a produção do ouro. Assim como o chumbo representa o estado caótico da alma humana e as limitações decorrentes disso, como escravo, José tinha suas possibilidades restritas, mas é nessa condição que ele começará sua ascensão, ao ser vendido para Potifar.

Na casa desse oficial do faraó, José acaba se tornando um servo de destaque, responsável por administrar todas as posses de seu senhor. Segundo a Bíblia (Gn 39:5), Deus abençoou a casa de Potifar durante todo esse período, o que mostra o aparecimento de uma outra etapa da Obra, representada por Júpiter, o senhor dos deuses, que manifesta sua benevolência trazendo a prosperidade e a fecundidade após a putrefação saturnina.

Entretanto, com todo o sucesso que conquistou na casa de Potifar, José acaba sendo alvo das investidas da mulher de seu senhor, que tenta seduzi-lo. É o aparecimento de Vênus, a sedução oferecida pelas bênçãos divinas da fase anterior. Como os valores são ambíguos, eles podem também ser um grande obstáculo para o desenvolvimento espiritual, como comprova o episódio do Jovem Rico, narrado no Evangelho. 

José poderia ter cedido aos encantos da esposa de Potifar e traído a confiança de seu senhor, mas resiste até o ponto de ter de fugir (literalmente) das investidas da sedutora. Nesse caso, Vênus é contrabalançada por Marte, a virilidade espiritual do homem que luta contra si mesmo, para destruir nele o apego venusino às dádivas espirituais. 

Essa atitude marcial tem como resultado a criação de uma espécie de indiferença em relação às coisas, já que elas deixam de ser desejadas em si mesmas. Nesse caso, o homem se torna receptivo à vontade divina, e pode aceitar com tranquilidade mesmo as situações mais desagradáveis. É a manifestação da Lua, a receptividade pura à luz solar, simbolizada pela ida de José à prisão. De fato, é nessa situação aparentemente ruim que se manifesta nele, pela primeira vez, o dom da interpretação dos sonhos. 

Tendo se mostrado dócil à vontade divina, José ganha não só a capacidade de interpretar sonhos, mas também o cargo de governador do Egito, que simboliza o ponto culminante da Obra hermética: a produção do ouro. Nesse estágio, passado todo o processo, o alquimista ressuscita, regressando na plena consciência de seu corpo e portando em seu interior a essência da Grande Obra. De forma análoga, José não só sai da prisão para ser exaltado como governador, mas também recebe o nome simbólico de Zafenate Paneia, que significa "Deus disse: ele está vivo".

Assim, completa-se o processo de balanceamento das forças: da mesma maneira que Júpiter equilibra Saturno e Marte balanceia Vênus, a ação conjunta da receptividade lunar e da realeza solar geram juntas o elixir da longa vida, o manancial interior capaz de alimentar não só o adepto, mas também aqueles que estão ao seu redor: "E de todas as terras vinham ao Egito, para comprar de José; porquanto a fome prevaleceu em todas as terras." (Gn 41:57). Mais uma vez se confirma a analogia entre José e Hermes, pois a síntese entre Sol e Lua só é possível através do Mercúrio, que porta em si a resolução das forças planetárias e, por isso, serve de meio para a condução da Obra.




sexta-feira, 3 de julho de 2015

A Óctupla Morte



Número ambíguo e de reverberações sinistras, o oito há muito atrai minha imaginação aos seus fundos simbólicos.

Trata-se fundamentalmente do símbolo numérico dos saltos qualitativo-formais, das mudanças de plano ou escala. Daí sua relação tradicional com as imagens mortuárias. Nas catacumbas romanas, por exemplo, é comum a presença dos lábaros, formas óctuplas que deixam entrever um sentido de obra finalizada e transcendida, e portanto, de repouso eterno. 

Uma breve observação da escala musical não deixa dúvida quanto ao sentido universal dessa passagem. Após uma sequência natural de sete sons que vai do “dó” ao “si”, segue-se novamente o dó, mas não o mesmo dó, um “dó oitavado”, transmutado qualitativamente.     
    
Outras aplicações tradicionais do oito como imagem de passagem podem ser observadas na regra judaica de circuncisão ao oitavo dia do recém-nascido, bem como no formato octogonal das pias batismais antigas ou na ressurreição de Cristo ao oitavo dia da sua paixão. Ademais, as estruturas octogonais são tradicionalmente utilizadas nas construções de domos em templos de todas as tradições. Sendo a transição geométrica entre o quadrado e o círculo, a forma óctupla serve como ligação estrutural entre a parte inferior da construção, geralmente quadrada ou retangular e a cúpula redonda na parte superior. Não é gratuito lembrar que a tradição chinesa considera que a terra é quadrada e o céu, redondo, funcionando o octógono como a transição perfeita entre esses dois planos.       


Perceba que a obra completa e perfeita sempre foi simbolizada pelo número sete em todos os povos. A obviedade disso não escapa a praticamente ninguém criado em países de cultura cristã. Como se sabe, Deus criou o mundo, completou a sua obra escalar, em seis dias e no sétimo descansou.  À perfeição dessa obra criativa, segue-se um estágio bem mais escuro, relacionado ao fim ou destruição desse mesmo “cosmos” septenário. Não por acaso, oito é o número típico de Dionísio ou de Shiva. A ideia aqui é a morte renovadora, a dissolução intoxicante de todas as formas cristalizadas, a dança terrível de Shiva Nataraja.    



É curioso como geralmente as uvas usadas na formação da bebida dionisíaca, o vinho, são pisadas e reduzidas ao seu sumo durante o período anual do signo de Escorpião, o oitavo signo zodiacal, arquétipo astrológico da devastação estática.     

Esta época do ano, regida pelo signo de Escorpião, é marcada pela de morte da vegetação, pelo despojamento de todos os seus adornos, flores, folhas, cores e vitalidade, logo após as primeiras chuvas outonais. Em seguida, o apodrecimento da matéria orgânica e a formação do húmus na terra escura.  
Fica clara a escolha do escorpião, portador do veneno dissolvente e tóxico, como a síntese imagética desse processo.       


Os espagiristas sabem bem a importância dessa época do ciclo solar. Seu trabalho é o apodrecimento dos materiais, o retorno ao negro absoluto e fétido, de modo que, alcançada a plena inércia e passividade, seja possível separar o sutil do espesso. É assim também com o homem: findo o corpo, jazente apenas o negro fétido, as cinzas, pode a alma enfim desprender-se, oitavar-se.   

Como diria o grande espagirista das almas ocidentais, “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”.

domingo, 28 de junho de 2015

O Senhor da Forma e a divinização às avessas


"O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico, da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga de água, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão — tudo são tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

O Senhor da Forma não significa as situações de vida em si que criamos para serem fisicamente ricas e seguras. Refere-se, antes, à preocupação neurótica que nos impele a criá-las, a tentar controlar a Natureza. O ego ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer irritação. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanças ou forçamos mudanças, tentamos criar um ninho ou um playground."

(Chogyam Trungpa, Além do materialismo espiritual)

Proponho nesse post uma reflexão sobre a Internet a partir do simbolismo dos "Três Senhores do Materialismo", utilizado no Budismo Tibetano e citado por Chogyam Trungpa no trecho acima. Segundo o autor, esses três senhores são o Senhor da Forma, o Senhor da Palavra e o Senhor da Mente. No mundo de hoje, o primeiro Senhor se manifesta principalmente em nosso busca neurótica por conforto, comodidade, segurança e prazer.

Atualmente, a Internet talvez seja a melhor forma de observar a atuação do Senhor da Forma: compramos de tudo com um toque de um botão, manipulamos imagens com photoshop, nos escondemos atrás de um teclado para emitir opiniões que jamais falaríamos em público, criamos amizades superficiais que só existem on line, temos acesso a todo tipo de prazer instantâneo e por aí vai. A atratividade desse ambiente virtual é exatamente e a segurança e o poder que ele proporciona: nos sentimentos seguros, livres da imprevisibilidade, dos riscos, das tristezas que a vida real proporciona:


A consequência disso é que criamos um mundinho hermeticamente fechado,  no qual somos todo-poderosos. O Senhor da Forma dá uma sensação de poder ao homem, tornando-o um deus. É uma espécie de divinização ao contrário: se todas as tradições espirituais e religiosas falam que o homem pode se divinizar porque, de alguma forma, participa da natureza divina, o Senhor da Forma torna um homem um deus porque faz a vontade humana ser a medida de todas as coisas. Achamos que o mundo gira em torno de nosso umbigo, que tudo deve se dobrar à nossa vontade porque podemos fazer de tudo apertando um botão.

Por isso, a única maneira de escapar das ilusões do Senhor da Forma é recusando essa divinização ao contrário. Usando um simbolismo cristão, é necessário uma kenosis (esvaziamento): se Cristo, sendo Deus, não quis ser reputado como Deus, mas assumiu a forma de servo e aceitou a cruz, nós devemos também renunciar à divinização do nosso ego para aceitar a realidade tal como ela é, e não como o Senhor da Forma nos apresenta. Ao invés de buscar a assepsia do mundo virtual para evitar aquilo que não gostamos ou não queremos, devemos aceitar essas situações como sinais saturninos que Deus nos envia para refletir sobre nossa própria condição. Somente assim é possível sair do nosso mundinho particular e nos abrir para o Infinito.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Pasolini, Nicodemus e a Morte


Faz alguns dias em que estava matutando sobre a resposta do Reverendo Augusto Nicodemus sobre a dessacralização da cruz e dos símbolos cristãos . E tive um insight na sexta sobre um paralelo entre protestantismo e o filme Medeia, do diretor italiano, Pier Paolo Pasolini. Como não tive pressa, a Morte, esta confreira letal e certeira, publicou um interessante post sobre o tema. O que amplia meu interesse em complementá-lo, talvez como um desvaneio simbólico ou uma percepção completamente  lunática do assunto.
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Jasão

Ao ver o filme temos um dos protagonistas Jasão (Giuseppe Gentile), aquele que nasce criado por um centauro, elo simbólico que carrega em si o discurso racional e mito poético. Quando Jasão o vê em forma humana representa o racional, o descritivo e o analítico, quando em forma mítica de Centauro (meio homem e meio cavalo), a fala carregada de símbolos, mitos e um certo tom místico. Quando pequeno Jasão ouve os discursos racionais do Centauro e logo lhe chega o sono, a medida que cresce só lhe interessa o discurso racional, e só enxerga no centauro o seu lado homem. O mítico e simbólico não lhe cabem mais.   


Centauro                               Homem

Ao retornar ao reino que seu tio roubou de seu pai,  Jasão requer seu quinhão, seu reino que lhe é justo por direito hereditário, porém seu tio lhe incita a troca do Velocino de Ouro pelo reino. Para isto,  Jason segue ao  Reino de Iolcos, onde conquista o  Velocino de Ouro e seduz, ou melhor,  toma para si, a sacerdotisa Medeia (Maria Callas),  que facilita sua fuga matando seu irmão rei para fugir com o amado. Ao chegar em seu reino, o Velocino de Ouro não tem mais o seu poder, ele só opera com eficácia e poder onde lhe é sagrado, na terra de Iolcos, onde a linguagem e a mística rege seu povo. Portanto o Tio não lhe reconhece o poder, com este simples amuleto ineficaz e não lhe cumpre a palavra para restaurar o reino de Corinto. Com Medeia se muda para Tessália, onde esta se aflige e se desespera,  pois percebe que não há centro, não existe um eixo, um sentido místico e religioso civilizacional, e logo profetiza vai ruir, não se pode construir a civilização sem este centro (dharma, eixo, lei) simbólico. Com certa altivez Jason e seus amigos zombam e riem desta cena de aflição e clamor de Medeia. Entretanto ele se entrega a seu amor e lhe faz três filhos. Com passar dos tempos Medeia perde seu encanto de sacerdotisa, sua linguagem, se torna racional, o sentido místico e religioso que eram sedutores se resignam a meras lembranças. Jasão se desprende dela, a abandona e vive alegre e sorrateiro numa roda de amigos, ou seja num círculo fechado, apenas atento a um ponto externo, o poder conferido pelo Rei, o seu quinhão. Este, o Rei, lhe promete sua filha para casamento. Antes do casamento, Jasão tem uma recaída, se deita e se deleita com os encantos de Medeia, e se encanta com seus rebentos, os filhos desta união. Traída Medeia mata a futura esposa, o Tio de Jasão e seus filhos em comum. A trama choca e horroriza qualquer mentalidade moderna , especialmente feminina, que se escandaliza com o fato da mãe que mata seus filhos, aliás isto é a marca ou a fama desta tragédia grega na modernidade.

E o Nicodemus?

Por analogias diremos que Nicodemus é o Jasão,  que cresce  no protestantismo entre um mundo onde o centauro é muito mais homem que centauro. Mas que no seu cerne, e no fundo ainda há uma semente de centauro que por vezes se encontra sufocada. Dos mitos simbólicos bíblicos e da mística de Lutero (Centauro), aos discurso analítico e sistemático das Institutas de Calvino (Homem), dos frutos como a desmitologização por Rudolf Bultmann(nada mais homem que isto). Claro que dentro de uma vertente que sente-se feliz em reafirmar fundamentalista, Nicodemus, é alheio à Bultman na sua completa desmitologização da Bíblia, pois sempre ainda existe os encantos do Centauro e de Medeia, mas na prática o modus vivendi, a forma de viver ecclesea é o de Homem, muito mais perto de seu desafeto Bultman, daí a dessacralização alardeada pela nossa querida confreira morte. 



Como Guenão e outros perenealistas alardearam o fruto do protestantismo é a secularização, onde o Centauro não tem vez, e nem sua parte homem o tem. Assim os discursos de Nicodemus parecem tão retrógrados à esta platéia moderna, que não se importa nem um pouco com os encantos de Medéia. Com isto o Velocino de Ouro não faz milagre, seu poder, sua mística são revelados somente àqueles que o reconhecem.


O mundo moderno é como Tessália constituído por três lemas imaginários de forma absoluta (igualdade, liberdade e fraternidade), que engendram ideologias vazias de significado metafísicos e simbólicos, quando destituídos de sua unidade, mas enraizados em uma materialidade efêmera. Então não existe eixo, dharma, nem centro, nem lei, logo este mundo vai ruir. Mas o nosso Jasão análogo adora construir com seus amigos neste mundo sem sentido simbólico e cheio de chatíssimas regras morais e justificativas racionalistas de fé. Realmente pueril como as risadas de Jasão e seus amigos ou quando ele brinca de roda no filme Medeia. Mas eles amam este mundo moderno, as suas benesses e por isto tomam posturas para agradar aqueles que só enxergam homens e não centauros. Estes que estão no poder são como o Tio de Jasão, o rei que oferece lugar de honra neste reino terreno,  desde que você abandone Medeia e qualquer ponte com o mundo simbólico, antigo e tradicional. Afinal o que  impera no reino atual é o físico, o mortal e o racional. Portanto não quero esgotar, nem muito menos matar neste assunto o uso de uma obra tão simbolicamente forte como este filme de Pasolini. Mas cada vez que Jasão se ilude com o reino, morre mais um filho espiritual seu com Medéia...


domingo, 14 de junho de 2015

Simbolismo no Jardim das Delícias - Primeira Parte


Gostaria de compartilhar com os confrades a primeira de uma série de notas sobre o célebre tríptico “Jardim das Delícias” do pintor medieval de influência alquímica, Hieronymus Bosch. 

Trataremos primeiramente do primeiro painel, mais especificamente da parte superior do primeiro painel do tríptico.

Uma das chaves mais importantes para a compreensão simbólica da obra é a utilização das cores azul e rosa pelo pintor. O rosa, cor quente e interior, nesse contexto,  simboliza as influências celestes.  O azul, externo e frio, representa as energias terrestres. 

Não por acaso, o manto do Cristo e a bela fonte do Jardim, figuras centrais do painel, apresentam uma suave cor rosa. O rosa é cor esotérica por excelência nas tradições devocionais hindus. 
Sobretudo os sanyassis de linhagem bhaktica usam vestes rosas ou alaranjadas para representar a absorção progressiva em prema, o amor divino.   

O uso das figuras animais também não é casual, obedecendo o pintor ao sentido profundo dos famosos bestiários medievais. Brevemente, cumpre notar a presença de animais sagrados e de alta nobreza, localizados em geral nas partes superiores do quadro: pássaro, elefante branco,  unicórnio,  urso,  coelho.  Por outro lado, percebe-se a presença de  animais inferiores, rastejantes, impuros e híbridos, em sua maioria localizados nas instâncias inferiores do painel.

Em seguida, observa-se na parte superior do quadro uma série de montanhas de estranha arquitetura, quase surrealista. A primeira delas, em primeiro plano, é feita de pedras intricadas, e permeada de pássaros em movimento ascendente. Trata-se do elemento mais alto do quadro, uma montanha divina, volteada de animais sagrados, energias divinas voltadas à fonte do Ser.   Mais ao fundo, nota-se uma série de três montanhas azuis, compondo um genial resumo do mundo criado.





A primeira dessas três montanhas azuis, mais próxima da montanha da divindade, é ela mesmoa repleta de animais de cores celestiais e pérolas incrustadas. Trata-se muito provavelmente da realidade angélica, Olam Ha Beriyah, o plano das águas superiores.  

A segunda montanha, um pouco mais distante, conta com um número bem menor de pássaros pousados, nenhum deles apresentando cores vivas e quentes. É curioso notar a presença nessa montanha de um signo redondo encimando um eixo que aponta para para baixo. Em comparação com a figura lunar da árvore seguinte, parece tratar-se de uma representação solar. A estaca apontando para baixo parece indicar justamente o plano imediatamente inferior à esfera do Sol, Yetsirah, as águas inferiores ou astrais.     


A última das três montanhas azuis não possui nenhum pássaro, muito embora existam árvores para recebê-los, o que denota o seu potencial de receptividade. Curiosamente, essa terceira montanha é duplicada, indicando o mundo da dualidade, da matéria. O símbolo da lua brilhantemente colocado por Bosch na parte superior da figura não deixa dúvida de que a montanha faz referência ao mundo sublunar, Asiyah.

Encerra-se assim essa espécie de prólogo da obra, uma verdadeira síntese cosmológica e metafísica similar ao esquema da arvore sefirótica judaica.





       

sábado, 13 de junho de 2015

Augustus Nicodemus Lopes e a dessacralização do mundo

Estava eu a navegar pela Internet quando me deparei com o seguinte texto, publicado pelo pastor presbiteriano Augustus Nicodemus Lopes em seu facebook [1]:

"NÃO ESTOU OFENDIDO

Quando vi as imagens da transexual "crucificada"na parada gay não me senti ofendido, como cristão. É óbvio que discordei da estratégia de marketing dos organizadores e sem dúvida percebi que o alvo era mesmo a provocação aos cristãos. Embora o episódio tenha sido justificado como sendo uma forma de expor a humilhação sofrida pelos gays, a impressão que dá é outra.

Mas, afora isto, não me senti provocado, atingido ou ofendido. Por uma razão simples. Ali não estava acontecendo uma profanação de objetos sagrados para mim - no caso, a cruz - simplesmente por que para mim uma cruz de madeira nada tem de sagrada nela. Meu cristianismo evangélico reformado não tem templos sagrados, objetos sagrados, images sagradas, símbolos sagrados ou líderes sagrados. Por isto não ficamos explodindo bombas quando zombam de Lutero, Zuinglio ou Calvino, quando tripudiam sobre a Bíblia ou quando picham as igrejas. E por isto eu não me sinto ofendido quando alguém usa uma cruz de madeira para suas manifestações anticristãs ou para outros objetivos.

As coisas que considero santas estão muito além do alcance dos homens, para que estes possam profaná-las. O meu Salvador está nos céus, o meu Deus é rei do universo, minha morada é celestial, a Palavra de Deus está escrita nos céus e é eterna, o pão e o vinho nada mais são que representações materiais daquele que se assenta no trono do universo. Realmente, não há nada no meu cristianismo que esteja ao alcance de quem deseja me ofender através da profanação.

Claro, para quem a cruz é sagrada, as imagens são sagradas, os templos são sagrados, seus líderes são sagrados... estes ficarão ofendidos. Eu os entendo. Devemos respeitar toda crença. Mas, no meu caso, uma transexual pendurada numa cruz provoca, no máximo, a confirmação do que eu já sei, que nenhum pecador consegue se livrar de Deus, ou daquilo que ele pensa que é Deus.

Só me vem à mente o Salmo 2:

1 Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:
3 Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.
"

A mensagem permite uma boa reflexão a respeito do caráter anti-tradicional do protestantismo, já enfatizado pelos autores da escola tradicionalista, particularmente René Guénon e Julius Evola. Isso porque o "cristianismo evangélico reformado" do pastor Nicodemus Lopes nada mais é do que uma manifestação incipiente (mas nem por isso menos real) de um dos aspectos principais da modernidade, a dessacralização do mundo.

Se para o cristianismo tradicional toda a realidade é sagrada, na medida em que é um símbolo do Criador e na medida em que serve de suporte para ascender até Ele [2], o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes rejeita toda e qualquer sacralidade na Criação. Como ele mesmo diz, as coisas santas "estão muito além do alcance dos homens". Num cristianismo como esse, cabe perguntar se é possível ainda haver lugar para a Encarnação do Verbo, cujo objetivo é exatamente restaurar a glória original da natureza humana, a imagem divina perdida com a Queda [3]. Como explica Santo Atanásio no livro Sobre a encarnação do Verbo, Cristo reconduz “à incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção [...]. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.”.

Por aí se pode compreender também a imensa pobreza simbólica que caracteriza o protestantismo brasileiro que, nesse ponto, segue fielmente a cartilha do "cristianismo evangélico reformado" de Augustus Nicodemus Lopes. Não há símbolos sagrados que possam servir de apoio para o crescimento espiritual do fiel. Não há imagens, nem preces canônicas, nem práticas espirituais devidamente estruturadas para aproximar o homem de Deus. Quando muito, há uma cruz ou um peixe, mantidos mais por costume do que por seu valor intrínseco.

A sequência do texto de Nicodemus Lopes mostra bem aonde chega o seu "cristianismo evangélico reformado". Para ele, a Palavra de Deus, sendo escrita no céus e eterna, obviamente não pode ser Cristo, o Verbo que se fez carne, mas a Bíblia. Ou seja, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, na verdade, é um "cristianismo islâmico" ou um "islamismo cristão":

"Com efeito, enquanto no Islã o Corão é a Palavra Divina, no Cristianismo é o Cristo vivo na Eucaristia que é o Verbo Divino, e não o Novo Testamento; este desempenha somente o papel de um suporte, do mesmo modo que o Profeta é só um suporte da mensagem divina, e não a própria mensagem. A lembrança, o exemplo e a intercessão do Profeta estão subordinados ao Livro revelado." (Frithjof Schuon, A unidade transcendente das religiões. São Paulo; IRGET, 2011).

A consequência disto é óbvia: se as coisas santas "estão muito além do alcance dos homens" e se a Palavra Divina está nos céus, não há Cristo vivo na Eucaristia. Como calvinista, Nicodemus Lopes ainda crê (ao menos teoricamente) que Cristo esteja presente na Eucaristia, embora essa presença seja puramente espiritual. Entretanto, toda sua linha de raciocínio torna impossível qualquer forma de manifestação do divino na realidade material, e não é por acaso que fala da Eucaristia como uma ambígua "representação material daquele que está assentado no trono do Universo". Ulrich Zwinglio, o teólogo protestante que negou qualquer forma de presença de Cristo na Eucaristia, certamente teria adorado essa definição de Nicodemus Lopes!

Entretanto, fazemos um elogio ao "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes se o chamamos de cristianismo islâmico, pois no islamismo ainda há espaço para relíquias, como as do profeta Muhammad conservadas em Istambul. Pelo contrário, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, por esquecer que a realidade material pode servir de suporte para influências espirituais [4], lembra mais o wahabbismo, a seita muçulmana responsável pela destruição de vários mausoléus, templos e lugares sagrados do islam.  

O cemitério de Al-Baqi, em Medina, onde se encontravam vários túmulos de familiares do profeta Muhammad venerados pelos xiitas...

...e, hoje, a mesma área, após a destruição promovida pelos wahabbitas em 1925.

Assim, podemos ver a verdadeira face desse "cristianismo evangélico reformado": sendo ele irmão siamês do fundamentalismo islâmico, sua consequência só pode ser destrutiva, embora adote uma face "tolerante" ao falar que "não ficamos explodindo bombas" ou que "devemos respeitar toda a crença". Na verdade, o "cristianismo evangélico reformado" de Augustus Nicodemus Lopes, bucha de canhão da modernidade, destrói por dentro: seu objetivo final é a dessacralização completa de tudo.


[1] https://www.facebook.com/AugustusNicodemusLopes/posts/923311247721287

[2] É o que explica, por exemplo, São Boaventura, em seu livro Itinerário da mente para Deus: "Podemos determinar que todas as criaturas desse mundo sensível levam a mente daquele que contempla e obtêm sabedoria à Deus. Pois são sombras, ecos, pinturas, traços, simulacros e reflexos daquele Primeiro Princípio." (cap. II)

[3] Se levado às últimas consequências, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes também perverte completamente o sentido da primazia do homem dentro da Criação: se todas as coisas foram criadas para o homem, ele deve usá-las como uma ponte para elevar-se até Deus. Entretanto, se nada no criado pode funcionar como ponte até Deus, já que as coisas sagradas estão num mundo celestial inacessível, resta compreender o reinado do homem sobre a Criação como um desfrute individualista, no qual ele faz o que bem entende da Criação...

[4] É o que mostra, por exemplo, a Arca da Aliança e a menção nos Atos dos apóstolos (19:12) aos aventais de São Paulo, que curavam enfermos e expulsavam demônios.