Estava eu a navegar pela Internet quando me deparei com o
seguinte texto, publicado pelo pastor presbiteriano Augustus Nicodemus Lopes em
seu facebook [1]:
"NÃO ESTOU
OFENDIDO
Quando vi as imagens
da transexual "crucificada"na parada gay não me senti ofendido, como
cristão. É óbvio que discordei da estratégia de marketing dos organizadores e
sem dúvida percebi que o alvo era mesmo a provocação aos cristãos. Embora o
episódio tenha sido justificado como sendo uma forma de expor a humilhação
sofrida pelos gays, a impressão que dá é outra.
Mas, afora isto, não
me senti provocado, atingido ou ofendido. Por uma razão simples. Ali não estava
acontecendo uma profanação de objetos sagrados para mim - no caso, a cruz -
simplesmente por que para mim uma cruz de madeira nada tem de sagrada nela. Meu
cristianismo evangélico reformado não tem templos sagrados, objetos sagrados,
images sagradas, símbolos sagrados ou líderes sagrados. Por isto não ficamos
explodindo bombas quando zombam de Lutero, Zuinglio ou Calvino, quando
tripudiam sobre a Bíblia ou quando picham as igrejas. E por isto eu não me
sinto ofendido quando alguém usa uma cruz de madeira para suas manifestações
anticristãs ou para outros objetivos.
As coisas que
considero santas estão muito além do alcance dos homens, para que estes possam
profaná-las. O meu Salvador está nos céus, o meu Deus é rei do universo, minha
morada é celestial, a Palavra de Deus está escrita nos céus e é eterna, o pão e
o vinho nada mais são que representações materiais daquele que se assenta no
trono do universo. Realmente, não há nada no meu cristianismo que esteja ao
alcance de quem deseja me ofender através da profanação.
Claro, para quem a
cruz é sagrada, as imagens são sagradas, os templos são sagrados, seus líderes
são sagrados... estes ficarão ofendidos. Eu os entendo. Devemos respeitar toda
crença. Mas, no meu caso, uma transexual pendurada numa cruz provoca, no
máximo, a confirmação do que eu já sei, que nenhum pecador consegue se livrar
de Deus, ou daquilo que ele pensa que é Deus.
Só me vem à mente o
Salmo 2:
1 Por que se enfurecem
os gentios e os povos imaginam coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e
contra o seu Ungido, dizendo:
3 Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá."
A mensagem permite uma boa reflexão
a respeito do caráter anti-tradicional do protestantismo, já enfatizado pelos
autores da escola tradicionalista, particularmente René Guénon e Julius Evola. Isso porque o "cristianismo evangélico reformado" do pastor Nicodemus Lopes nada
mais é do que uma manifestação incipiente (mas nem por isso menos real) de um
dos aspectos principais da modernidade, a dessacralização do mundo.
Se para o cristianismo
tradicional toda a realidade é sagrada, na medida em que é um símbolo do
Criador e na medida em que serve de suporte para ascender até Ele [2], o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes rejeita toda e qualquer sacralidade na Criação. Como ele
mesmo diz, as coisas santas "estão muito além do alcance dos homens".
Num cristianismo como esse, cabe perguntar se é possível ainda haver lugar para
a Encarnação do Verbo, cujo objetivo é exatamente restaurar a glória original
da natureza humana, a imagem divina perdida com a Queda [3]. Como explica Santo
Atanásio no livro Sobre a encarnação do Verbo, Cristo reconduz “à
incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção [...]. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da
ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.”.
Por aí se pode compreender também
a imensa pobreza simbólica que caracteriza o protestantismo brasileiro que,
nesse ponto, segue fielmente a cartilha do "cristianismo evangélico
reformado" de Augustus Nicodemus Lopes. Não há símbolos sagrados que
possam servir de apoio para o crescimento espiritual do fiel. Não há imagens, nem
preces canônicas, nem práticas espirituais devidamente estruturadas para
aproximar o homem de Deus. Quando muito, há uma cruz ou um peixe, mantidos mais
por costume do que por seu valor intrínseco.
A sequência do texto de Nicodemus
Lopes mostra bem aonde chega o seu "cristianismo evangélico
reformado". Para ele, a Palavra de Deus, sendo escrita no céus e eterna,
obviamente não pode ser Cristo, o Verbo que se fez carne, mas a Bíblia. Ou
seja, o "cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, na
verdade, é um "cristianismo islâmico" ou um "islamismo cristão":
"Com efeito, enquanto no Islã
o Corão é a Palavra Divina, no Cristianismo é o Cristo vivo na Eucaristia que é
o Verbo Divino, e não o Novo Testamento; este desempenha somente o papel de um suporte,
do mesmo modo que o Profeta é só um suporte da mensagem divina, e não a própria
mensagem. A lembrança, o exemplo e a intercessão do Profeta estão subordinados ao
Livro revelado." (Frithjof Schuon, A unidade transcendente das religiões. São Paulo; IRGET, 2011).
A consequência disto é óbvia: se as
coisas santas "estão muito além do alcance dos homens" e se a Palavra
Divina está nos céus, não há Cristo vivo na Eucaristia. Como calvinista,
Nicodemus Lopes ainda crê (ao menos teoricamente) que Cristo esteja presente na
Eucaristia, embora essa presença seja puramente espiritual. Entretanto, toda
sua linha de raciocínio torna impossível qualquer forma de manifestação do
divino na realidade material, e não é por acaso que fala da Eucaristia como uma
ambígua "representação material daquele que está assentado no trono do
Universo". Ulrich Zwinglio, o teólogo protestante que negou qualquer forma
de presença de Cristo na Eucaristia, certamente teria adorado essa definição de
Nicodemus Lopes!
Entretanto, fazemos um elogio ao
"cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes se o chamamos
de cristianismo islâmico, pois no islamismo ainda há espaço para relíquias, como
as do profeta Muhammad conservadas em Istambul. Pelo contrário, o
"cristianismo evangélico reformado" de Nicodemus Lopes, por esquecer que
a realidade material pode servir de suporte para influências espirituais [4], lembra
mais o wahabbismo, a seita muçulmana responsável pela destruição de vários mausoléus, templos e lugares
sagrados do islam.
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O cemitério de Al-Baqi, em Medina, onde se encontravam vários túmulos de familiares do profeta Muhammad venerados pelos xiitas... |
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...e, hoje, a mesma área, após a destruição promovida pelos wahabbitas em 1925. |
Assim, podemos ver a verdadeira
face desse "cristianismo evangélico reformado": sendo ele irmão
siamês do fundamentalismo islâmico, sua consequência só pode ser destrutiva,
embora adote uma face "tolerante" ao falar que "não ficamos
explodindo bombas" ou que "devemos respeitar toda a crença". Na
verdade, o "cristianismo evangélico reformado" de Augustus Nicodemus
Lopes, bucha de canhão da modernidade, destrói por dentro: seu objetivo
final é a dessacralização completa de tudo.
[1] https://www.facebook.com/AugustusNicodemusLopes/posts/923311247721287
[2] É o que explica, por exemplo, São Boaventura, em seu
livro Itinerário da mente para Deus:
"Podemos determinar que todas as criaturas desse mundo sensível levam a
mente daquele que contempla e obtêm sabedoria à Deus. Pois são sombras, ecos,
pinturas, traços, simulacros e reflexos daquele Primeiro Princípio." (cap.
II)
[3] Se levado às últimas consequências, o "cristianismo
evangélico reformado" de Nicodemus Lopes também perverte completamente o
sentido da primazia do homem dentro da Criação: se todas as coisas foram
criadas para o homem, ele deve usá-las como uma ponte para elevar-se até Deus.
Entretanto, se nada no criado pode funcionar como ponte até Deus, já que as
coisas sagradas estão num mundo celestial inacessível, resta compreender o reinado do homem sobre a Criação como um
desfrute individualista, no qual ele faz o que bem entende da Criação...
[4] É o que mostra,
por exemplo, a Arca da Aliança e a menção nos Atos dos apóstolos (19:12) aos aventais de São Paulo, que curavam
enfermos e expulsavam demônios.