"Pois assim como Deus em sua natureza é incomensurável, incompreensível
e infinito, ele é intolerável para a natureza humana." (Martinho Lutero)
Dia desses, navegando pela Internet,
encontrei um texto no melhor estilo Richard Dawkins de argumentação tosca.
Para dizer a verdade, o texto não tem nenhuma argumentação: é apenas uma
coletânea de citações sobre os massacres do Antigo Testamento, mas que mal escondem
o escândalo do autor diante de tanta morte e destruição. É impossível que esses textos
sejam inspirados por Deus, conclui o neo-ateu enrustido. Quod erat
demonstrandum!
O que nosso brilhante autor esquece
é que Deus não é um serzinho à nossa imagem e semelhança. Deus é infinito, o
homem é finito: “finito” e “infinito” não são termos simétricos [1]. A bondade de
Deus não é a nossa bondade e, por isso, Deus não pode ser “condenado” pelos mesmos
padrões morais que julgam as ações humanas. Se tudo foi criado do nada e de
graça por Deus, o que impede que Ele jogue tudo de novo no nada? A criação só existe enquanto Deus quer
e como Ele quer, e não por acaso, um dos atributos divinos mais enfatizados pelo Antigo
Testamento é o caráter "terrível" de Iavé:
“E todos os moradores da terra são reputados em nada; e
segundo a sua vontade ele opera no exército do céu e entre os moradores da
terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Daniel
4:35)
O
carola moralista pode ficar espantado com isso e até tomar as dores
do aspirante a Dawkins mencionado no início. Como Deus pode ser esse tirano que
age arbitrariamente? Como alguém pode amar um Deus que seja mais assustador que
o diabo? Acredito que a resposta (para escândalo do carola) está em Shiva, o “destruidor
dos mundos” na trimurti hindu:
“Shiva é um
destruidor e adora os locais da cremação. Mas o que é que Ele destrói? Não
apenas os céus e a terra no fechar de cada ciclo do mundo, mas os grilhões que
amarram cada alma individual. Onde e o que é o campo da cremação? Não é o local
onde os nossos corpos terrenos são cremados, mas os corações dos Seus amantes,
depostos, desperdiçados e desolados. O local onde o ego é destruído significa o
estado onde a ilusão e as acções são incineradas: isto é o crematório, o campo
da cremação onde Sri Natarâja dança, e daí Ele é chamado Sudalaiyâdi, Dançarino
dos campos crematórios.” (Ananda Coomaraswamy, A dança de Shiva)
Shiva é o
equivalente hindu do “Deus terrível” do Antigo Testamento e, assim como ele,
está associado à morte e à destruição. Na dança de Shiva, tudo é destruído, mas
esse aspecto negativo é relativo apenas ao nosso ponto de vista limitado. Do
lado de lá, há apenas luz e êxtase, pois Shiva e Vishnu, o mantenedor dos
mundos, são um só. De fato, a dança de Shiva é também repleta de misericórdia,
por nela são igualmente destruídos todos os laços que nos prendem a esse mundo. Da mesma forma, Deus
ceifa aquilo que ele mesmo deu para destruir nosso apego às coisas, para que
elas não se transformem em “deuses” para nós.
Se Deus dispõe da criação conforme Ele quer, nem por isso Suas ações são desprovidas de bondade: apenas nós que às vezes não conseguimos compreendê-la. Por isso, aquele que quer realmente amar a Deus
acima de todas as coisas deve ir além do moralismo carola.
Seu exemplo deve ser o de Jó, que após ter toda a sua vida destruída com a permissão
de Deus, ainda pôde dizer: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para
lá. O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.” (Jó
1:20).
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[1] "Podemos
fazer compreender essa assimetria por uma observação de aplicação corrente, que
provém simplesmente da lógica comum: se considerarmos um atributo ou uma qualidade qualquer, podemos dividir
todas as coisas possíveis em dois grupos, que são, de um lado, o das coisas que
possuem esta qualidade, e de outro as que não a possuem; mas, enquanto que o
primeiro grupo se acha assim definido e determinado positivamente, o segundo,
que só está caracterizado de modo puramente negativo, não está por isso
limitado e é verdadeiramente indefinido; não existe assim simetria, nem medida
comum entre estes dois grupos, que assim não constituem realmente uma divisão
binária, e cuja distinção só vale do ponto de vista especial da qualidade
tomada como ponto de partida, pois o segundo grupo não possui nenhuma homogeneidade e pode
compreender coisas que não tem nada em comum entre si, o que não impede que esta
divisão seja válida sob o aspecto considerado." (René Guénon, O homem e seu devir segundo o vedanta)